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O corpo em festa: o que acontece com todo esse bolo?

Não existe festa boa sem bolo e bolo bom tem que ter cobertura.  Mais do que isso, tem que estar bonito aos olhos meus e dos outros. Mas eis que o bolo não cabe na forma. Culpa de quem colocou ele na forma. Foi ingênuo, desavisado, incapaz de calcular ou de lembrar de olhar a altura do bolo. Olhou só pra largura e achou que ia caber perfeitamente na vasilha. Não! Não posso atribuir a causa desse “erro” pra pobre pessoa que teve a boa intenção de colocar o bolo no melhor lugar que tinha para ser levado para os cantos do mundo.  Então, a culpa é da forma, quem deu essa forma, quem a fabricou?  Muito rasa, quem colocou o bolo dentro dela não podia prever que o melhor podia ficar colado na sua tampa. O bolo não vai ficar perfeito de novo, nem aos olhos de quem o fez nem dos outros. Não, a culpa não é da forma, nem de quem a fez, de quem a fabricou. Já sei, a atribuição de causalidade para isso foi quem fez o bolo, colocou fermento demais, colocou sua pitada subjetiva  e o bolo cresceu muito. Talvez tenha sido as condições de pressão e temperatura a que ele foi submetido. Tudo para o bolo entrar na festa e ser aquele desejado pelos outros. Mas que vergonha de estar todo desfigurado da imagem que deveria ter, vai ficar lá feio dentro da tampa com suas culpas. Não. Ele vai ser aberto, fatiado, compartilhado e comido. Alguns vão gostar, outros nem tanto, mas pra falar dos culpados, entra na roda desde a decisão de fazer um novo corpo, com sua carga genética, sua história de ser desejado, encaixado numa forma, de se apresentar e ser apresentado,  a química do fermento e dos outros ingredientes, a adequação da temperatura a que foi cozido, seu acondiciomamento, pra dizer porque na hora boa dele viver sua vida de bolo gostoso e bonito, ele se bagunça todo porque ele foi feito para que sua tampa seja aberta para mundo e seja revelado em sua única forma possível. Como um fio desencapado, desprotegido, como assim um bolo de festa sem cobertura? Desprovido de sua funcionalidade e da razão pela qual foi feito. É isso mesmo? Que nada. Por acaso, tudo isso que aconteceu. E não por acaso, pode se ter um grande motivo pra passar os dedos na tampa e apreciar a cobertura de um modo inusitado. Aiai, o que mais se pode dizer sobre a constituição do sintoma dos sujeitos com doença autoimune?

Elise Alves dos Santos.

Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB).

Goiânia, 22 de abril de 2016.

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Roda de capoeira

Para “sair jogo” na roda de capoeira é preciso tomar uma posição diferente, é preciso sair da repetição da ginga, é preciso ousar, fazer acontecer, surpreender aquele sujeito que está jogando com você, propondo novos movimentos para ver o que surge na brincadeira. É preciso construir um roteiro improvisado na cumplicidade com o colega.

Na roda se instaura uma confraternização de um lugar de contenção, de ligação, de transformação, de transferência, de resistência e de desistência, sobretudo, de luta do ser-conjunto. Para sustentar a possibilidade de recriar a capoeira de mestre Bimba, no chão goiano por ele escolhido para viver, se oferecem referências e apelidos para a aderência de uma grande diversidade de classes sociais a uma mesma cultura. Com essa integração afetiva é possível dançar investimentos imaginários que sustentem a realização de nossos projetos (projetar é fazer!).

Jogar capoeira para realizar um projeto de utilidade ou beleza não é tarefa fácil, pois estamos acostumados a seguir planos coreográficos e ideológicos já estabelecidos por mestres autoritários que não nos deram a chance de dançar conforme nossa música. O capoeirista, na boa malandragem, vai forjar essa chance.

Um dos momentos mais esperados na capoeira é o da roda, poder ‘vadiar’ sem o compromisso de repetir um movimento em determinado momento pré-estabelecido. Não tem nada melhor que filosofar sobre essa possibilidade instaurada pela capoeira. Contudo, grande pode ser o lamento por muitas das vezes não se conseguir no “vamos-ver” do jogo de fazer o que gostaríamos. Parece que ainda o projeto de fazer não foi incorporado mesmo depois daquela sequência tão repetida nos treinos.

Depois de aceitar nossos obstáculos pessoais na roda de capoeira (imitando a roda da vida), podemos tentar interpretar que a beleza não esteja somente na apresentação de movimentos bem executados e harmônicos com o companheiro de jogo. A coragem de se expor para jogar, poder confiar seu corpo e sua proteção a alguém com quem joga pode ser bonito simplesmente pelo enfrentamento às vulnerabilidades de ataques, que não pretendem em sua verdade se realizar, mas apenas de dar a chance de rir de nossas fraquezas, de nosso despreparo, nossa pouca agilidade para “pensar” um golpe ou um contra-golpe para o que os mais experimentados da roda podem nos trazer.

A capoeira pode ajudar na conquista de uma autocrítica, na instilação de esperança em conseguir fazer o que propomos, na mobilização subjetiva e objetiva para sair da intensa vulnerabilidade que estamos quando não nos enxergamos. O desejo de exercitar o respeito aos capoeiristas, com suas autoridades, forças, gingas e fraquezas, leva, sem dúvidas, a nossa brincadeira de roda brasileira, a ser um patrimônio da humanidade.

 

Elise Alves dos Santos,

bailarina”, aluna do mestre Tatu de capeira regional.

 

Goiânia, 20 de janeiro de 2016.

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