Ensaios

Somos todos bitolados?

Para essa provocação, gostaria primeiro de lembrar que a palavra “bitola” em português do Brasil, significa justamente a distância entre as faces de dois trilhos em uma via férrea. A bitola precisa ter o mesmo tamanho do eixo do trem, sem esse padrão o trem irá descarrilhar. Os brasileiros, pouquíssimo habituados com trens, falam – especialmente em algumas regiões do país – a palavra “trem” para se referir a algo que não conseguem nomear, seja por desconhecimento, preguiça ou simplesmente pelo costume. Talvez o mesmo acabe acontecendo com o uso do adjetivo “bitolado”, que vai ganhar outros sentidos graças à inventividade própria dos falantes brasileiros.

Logo, imagino que este não lugar entre os trilhos foi transformado numa ideia de alienação depreciativa para se dirigir aos bitolados. Paradoxalmente, é a bitola que marca a diferença no sentido de que não é nem trilho “A” nem trilho “B”. A bitola sustenta uma posição de vazio, angustiante, é verdade, porque sem resposta para ser considerada um trilho. Nesse sentido, os marginalizados costumam ficar em sua posição de nenhum entre duas margens. Geralmente são bitolados, rompidos de certa forma com uma realidade, sem lugar visível, descrentes de uma escolha, “escolhem” o próprio não lugar.

Como é difícil aceitar aquele que não está dentro dos trilhos, que não é nenhum trilho, talvez seja mais difícil ainda aceitar quem não está no mesmo trilho que Eu. Escuto as vozes que dizem acerca do comportamento alheio, os outros, o inferno que sempre são eles.

O trem passará sobre os trilhos, vai dobrar em uma direção ou outra conforme um caminho que já foi trilhado. Alguns passageiros convictos deste caminho pré-determinado não se preocupam mais aonde ele vai chegar e tentam sobreviver aos sacolejos, cada um a sua maneira. Outros, também incertos da viagem, querem apenas fazer uma boa viagem dentro do trem, sem se preocupar muito se às vezes ele se inclinará mais para um lado ou para o outro. Outros, quando conseguem avaliar as opções de maquinista, simplesmente gostariam de fazer valer a dignidade de sua escolha, quase inútil de que não gostaria de viajar com nenhum maquinista pavoroso, que não dá garantias de viagem digna.

Gosto de pensar que em outros mundos distantes do Brasil, os meios de transporte, especialmente os de sistemas férreos são mais “modernos” e trazem outras opções em que os trilhos e as bitolas não precisam mais existir. Fico pensando se a maior parte dos brasileiros continua desejando trilhar juntos com um coletivo e propor caminhos para cada maquinista fazer, pois ainda que a ordem de tráfego seja para cada um fazer o próprio caminho, ainda precisamos fazer a maior parte dele acompanhados.

Podemos cada um com sua diferença de espaço, eleger um grande maquinista que possa nos oferecer a maravilha de uma viagem desejada, podemos decidir entre os ruins, ou ainda, anular um dever de escolha bitolado que estamos há muito utilizando. Mas quando se é minoria e as vozes de quem fala não são “válidas”, resta o descontentamento de quem querendo pular fora do trem, precisa seguir viagem, ainda que tensa e insegura. Um verdadeiro trem fantasma!

 

Elise Alves dos Santos, 25 de outubro de 2018, dia da democracia.

 

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