Ensaios

Entrevista À Bibliothèque Charcot

Desde quando soube da oportunidade de morar em Paris, imaginava-me trabalhando na Salpetrière, fazendo algum trabalho lá. Como muitos psicanalistas seguidores de Freud esse desejo de “refazer” seus passos ganhou força quando cheguei nos arredores do Hospital. Embora eu não tenha encontrado o famoso quadro de Pinel libertando as histéricas, tive a sorte de descobrir a Bibliothèque Charcot em um prédio ultra-moderno ao lado das construções mais antigas da Salpetrière.

A excelente recepção que tive por parte dos bibliotecários, em especial pelo trabalho de apresentação da biblioteca feito pelo biblioteconomista responsável –  Guillaume Delaunay –  foi determinante para reacender a fantasia de trabalhar nos lugares por onde Freud passou.

Assim que soube dos dossiês escritos pela pluma de Charcot referentes aos seus pacientes com Esclerose Múltipla (EM) e que ainda não haviam sido sequer numerizados, considerei que ali eu havia encontrado um tesouro perdido. O mestre de Freud estudava a histeria, desenhou um esquema do inconsciente, fascinou Freud. O que será que Charcot havia registrado nos dossiês de seus pacientes com EM? Que leitura psicanalítica eu poderia fazer desse material bruto? O que imaginei no princípio foi ganhando forma à medida que fui encontrando seu pensamento referente à histeria como base etiológica da Esclerose Múltipla.

Tive o incentivo de minha coorientadora do estágio de doutorado sanduíche, profa. Dra. Cristina Lindenmeyer da USPC – Paris 7, que me disse para seguir minha intuição. Com o auxílio e apoio de todos com quem me encontrei nesta cidade elegante, em especial, as pessoas de Guillaume Delaunay, Chantal Latin e madame Thomaz, meu trabalho pôde ser levado a diante. E foi assim que ao longo deste período de estágio, acabei transcrevendo cerca de 234 páginas referentes aos registros de 36 pacientes acompanhados por Charcot e alguns de seus colegas de trabalho entre 1859 à 1891.

Desde os antecedentes “hereditários” e antecendentes “pessoais” podemos ver os rastros da histeria que Charcot percebeu no trabalho de investigação e tratamento realizados por ele. A presença relevante de humores marcados por “tristezas violentas”, que às vezes foram descritas por histórias de estados “moralmente” dolorosos, são concomitantes às manifestações de dores fulgurantes nos membros do corpo.

Mais ao final do período de estágio me encontrei com uma grande figura da psicanálise contemporânea aqui na França, e falando com ela, tive como resposta à pergunta que fiz sobre a relação de amor entre Freud e Charcot, e as perspectivas de ligação entre Neurociências e Psicanálise, que Charcot “é uma figura que ficou no passado”.

Apesar de escutar essa posição de uma psicanalista historiadora, acredito que o contato direto com este material me permitiu fazer uma leitura que transcende a história de amor de Freud e Charcot. Trata-se da relação entre a Neurologia e a Psicanálise tão em voga nos dias de hoje. A pergunta que versa sobre a relação entre histeria e diversas doenças neurológicas autoimunes não perdeu o seu valor.

Observando a cidade, pude ver uma massiva publicidade incitando recursos para a pesquisa com Esclerose Múltipla aqui na França (assim como no Brasil), o trabalho que pude realizar no prédio do Instituto do Cérebro e da Medula Espinhal, onde está situada a Bibliothèque Charcot, pode me mostrar que este incentivo está presente na atitude das pessoas com as quais eu pude trabalhar. A escuta de Freud permitiu que ele ultrapassasse seu mestre, Charcot pôde dizer algo ao pai da Psicanálise. Descobrir o que está por detrás da letra, do estilo de escrita, e da língua do pai da Neurologia ainda pode dizer muito, ao meu ver, aos pesquisadores do corpo e de seus sintomas.

Paris, 28 de janeiro de 2018.

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