Ensaios

É tempo de cuidar: a dica em prol da saúde mental

São 5:10 h da manhã, sábado. Não, eu não trabalho sábado. Muito menos preciso acordar regularmente nesse horário para cumprir algum compromisso. Mas é isso que aconteceu, após ontem eu ter sido questionada sobre a importância de se cuidar da saúde mental nesse momento. Esse é o horário  que costumo acordar durante a semana para “bater o ponto” às 7 h, quando meu corpo já vai despertando antes mesmo do despertador. O mesmo corpo que já foi acordado repetidas vezes ao longo de mais de 10 anos de serviço público. A história de trabalho fica marcada em nossos corpos, dominado pelo hábito de seguir normas. Mas aos sábados, não. Eu já ia dormir “pensando” que eu ia gozar de mais horas de sono, restabelecer a energia gasta durante a semana e era isso o que acontecia. Hoje me pego, após 15 anos de experiência no atendimento a pessoas estressadas, surtadas, angustiadas, sofridas com suas doenças pré-existentes, por situações de choques de gestão, a responder se é tempo de propiciar condições para realização de tratamentos contínuos para saúde mental. Meu inconsciente carregado de trabalho, me fazendo trabalhar, me pôs para acordar essa hora de sábado para tentar defender a saúde mental dos trabalhadores em tempo de pandemia.

Antes mesmo dos burburinhos da COVID-19, todos nós que atendemos na clínica sabemos que os horários pós-expediente, ou intervalos de almoço, são os horários mais disputados para quem solicita atendimento. Afinal, que patrão vai dispensar seu empregado por mais de uma hora por semana para ir à terapia? Sim, o deslocamento, o trânsito, a sessão de 50 minutos aproximadamente, o retorno, o trânsito de novo. Muitos desistem do projeto de cuidar de sua saúde psíquica porque tem casa e família para cuidar, academia para ir, enfim, são muitas frentes de trabalho e ocupação para além do emprego formal (ou informal). Isso nem sempre é resistência para começar um tratamento psicológico.

Com tantas coisas inéditas, absurdas, desamparadoras acontecendo, cada um vai utilizar dos mecanismos de defesa ou estratégias protetivas para tentar seguir uma rotina menos desconfortável no isolamento. Intuitivamente, muitos de nós já seguem as “dicas” nas quais eu mesma pesquisei para criar um material gráfico de cuidados de saúde mental na quarentena (obrigada Christian Dunker e Leilyane Masson). Mas seguir tais dicas, ainda que importantes para dar passos iniciais diante da mudança abrupta, são insuficientes no cotidiano em que cada um deve descobrir o que deseja fazer, o que pode fazer, o que consegue fazer.

Os bons conselhos, por melhores que sejam, podem funcionar como alimentos perecíveis próximos da data de vencimento. Você compra, usa rápido, porque sabe que dali a pouco não tem mais função de existir para você. Afinal, como começar um tratamento contínuo, que demanda tempo (pelo menos uma vez por semana) num sistema que não dá tempo para o que não seja diretamente produtivo para a empresa? A boa notícia é que os empresários, a duras penas e passos de tartaruga, estão entendendo que uma pessoa que não se cuida não tem condições de cuidar bem das funções que exerce no trabalho.

A psicoterapia e a psicanálise divergem desta proposta de aconselhamento diretivo, seja na forma de uma psicoterapia psicanalítica em que a função materna, de apoio, suporte, holding, esteja mais presente, ou ainda seja a psicanálise em “padrão ouro”, que nos proporciona insigths, uma maior aproximação com as raízes dos problemas, com nossa (e)terna compulsão a repetição e que nos põe a fazer melhores acordos com os dilemas vividos. Em qualquer uma dessas possibilidades, e até mesmo quando as duas vão coexistindo no processo de análise pessoal, é preciso tempo. Não basta ir lá na prateleira da saúde mental e pegar uma dica.

               Sem tempo para negacionismos, nosso corpo-psiquismo está também em estado de emergência, de alerta. A desorientação toma conta de todos. Uns mais, outros menos. Os que têm filhos, os que participam dos grupos de riscos, os idosos, e qualquer um tem motivos para se (pre)ocupar com o coronavírus e com uma nova rotina, com uma nova realidade em que somos justamente demandados a mudar hábitos para preservar a saúde. Não é só de lavar as mãos que o homem viverá, mas de toda palavra que ele possa expressar, cuidar, chorar, se apropriar e ressignificar. O tratamento psicológico, para quem nunca fez, vou explicar:  por mais breve que seja, precisa de uma periodicidade, de tempo e espaço, uma constância, que alterna presença e ausência, tem de ser assegurada.

Um intensivo de férias pode até ser uma alternativa para quem não tem tempo, mas a vida continua depois. Fazer terapia na quarentena é mais complexo ainda porque não estamos de férias, precisamos pensar e decidir uma série de ações no dia-a-dia. É justamente nesse momento tão delicado que começar um tratamento psicológico pode ser um excelente momento para iniciar os cuidados com sua saúde mental como projeto de vida. Lembrando que os períodos excepcionais, como o que vivemos agora, é tempo de crises, mas também de oportunidades para mudança. Sim, vai passar. Contudo, muito do sofrimento “congelado” na hora que precisamos agir, pode ficar ali guardado até uma hora que “vem do nada” em que ele pode “derreter” tempos depois que a poeira virulenta abaixar. Se antes da pandemia já precisávamos cuidar da saúde mental, agora mais do nunca, e depois, acredite, também!

O corpo dominado pela rotina, requerido a cuidar justamente de uma nova rotina, quer “dar conta do recado”, quer antecipar os riscos para evitá-lo. Estamos descobrindo também que o teletrabalho e o isolamento são realidades promissoras, com seus prós e contras, mas que em muitos casos, pode levar a trabalhar mais e também a perder a noção do tempo, acelerar. Isso não é uma regra, e vamos aprendendo a lidar (ou não!) com a singularidade de cada trabalhador, com seus valores incorporados, suas obsessividades, suas vontades de contribuir e às vezes até mesmo de serem “super-herois”, quando a maioria está apavorada, adoecida, enfim, nossos compromissos de excesso têm a ver com nossas configurações psíquicas prévias à pandemia, que vem acentuar nosso jeito de funcionar, jeito de trabalhar, jeito de adoecer. Sim, é preciso assumir a capacidade de repressão, de renúncia pulsional para fazer a civilização andar. Mas isso não nos torna o exemplo de profissional ideal para a saúde. Pode ser o ideal para um modelo que se apropria da força de trabalho do humano como se fosse outra coisa qualquer. Fingir que tudo está bem quando não está pode ser uma bomba-relógio. A pandemia trouxe várias questões, o que mais importa quando tudo importa? Sabemos que não podemos abraçar o mundo com as pernas, mas podemos cuidar dele, promovendo tempo e espaço para se cuidar da vida psíquica, pois é dela de onde vem nossa vontade de acordar, mas também pode ser dela, que abalada e ferida, pode-se chegar ao ponto de não querer mais levantar da cama.  

Há anos nossos pacientes nos perguntam se declaração de psicólogo pode ser aceita no trabalho. Nós fazemos os documentos necessários, afirmamos e informamos a importância do tratamento para o sujeito que nos procura. Mas e os empregadores? Quando estarão prontos para fazer sua parte, se o atendimento psicológico não puder acontecer durante o expediente de trabalho? Se não puder começar num momento de crise, então quando? Está na hora, com ou sem brechas na lei ou nas políticas das empresas, de forjar tempo e espaço para o cuidado com a saúde mental, de cuidar “de corpo e alma” de nosso maior patrimônio e matrimônio, que somos nós mesmos em nosso corpo-psiquismo. É tempo de cuidar para o humano, há tempos descuidado, não colapsar, para não ruir o sistema onde vive, trabalhando, trabalhando… É preciso que a atenção à saúde mental do trabalhador promova o trabalho psíquico de cuidado do trabalhador para que ele possa continuar a trabalhar, com segurança e qualidade para o trabalho, com segurança e qualidade para sua vida. Enfim, é tempo de cuidar! Elise Alves dos Santos, 04/04/2020, sábado de manhã.

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