“Fulana é como uma mãe pra mim aqui no trabalho”, essa mesma fulana trabalhadeira, que oferece afeto e serviços, chega em casa e encarna a matriarca que cuida de tudo. Aos poucos a carga fica muito pesada e ela não consegue sustentar tantos trabalhos. A angústia proveniente de um local de trabalho afeta o sujeito por onde ele for, seja o trabalho de dentro ou fora de casa. Em decorrência da pandemia, o limite dentro-fora de casa fica tênue especialmente para os que passaram a exercer suas funções em regime de teletrabalho.
No consultório escuto as queixas de mulheres que trabalham “como se fosse uma mãe” para o marido. O “como se” é vivido de diversas formas de maternagem, seja na expectativa e cobrança dos cônjuges, seja no cumprimento desta expectativa pelas mulheres que tentam “fugir” ao conflito de não corresponder mais às expectativas. Os desejos, os direitos, e os projetos de vida das mulheres são postos em questão.
É como se houvesse um pacto silencioso pré-nupcial em que o “combinado” de que a mulher continue sendo a dona da casa e de todas as suas responsabilidades. Tendência esta que a atual geração está tentando romper. As funções maternas são importantes, mas se exercidas em exclusividade consomem qualquer sujeito além da conta. Porque é isso: a conta não fecha sem a divisão dos trabalhos não-remunerados e ou não-reconhecidos.
Noto que grande parte do sofrimento está enraizado em crenças e valores que formam a base cultural brasileira: machista, sexista e classista. Nossa herança histórica delegou às mulheres o lugar de objetos sexuais para os homens e de facilitadoras de condições propícias para o bem-estar de todas as pessoas.
Essas raízes culturais foram plantadas no Brasil a partir de 1850, com a criação da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro, época em que o discurso médico ganha força na proposta de controlar e prevenir doenças de salubridade e mortalidade na formação das cidades. Nessa perspectiva o discurso médico delega à mulher um novo estatuto dentro da família. A mulher que, na época colonial, estava submetida totalmente ao poder do marido, ao lado dos filhos e escravos, passa a ser valorizada como esposa e mãe, ganhando maior autoridade e responsabilidade pelo espaço doméstico, o que relativiza o poder do marido no núcleo familiar.
Essa mudança visou, enquanto projeto social, basicamente a colocar a
assistência aos filhos como atribuição materna, já que preservar a infância era
uma das estratégias para o controle da mortalidade. O discurso médico com sua
racionalidade produz argumentos que devem provar que a mãe é a pessoa mais
adequada para cuidar das crianças. “Nascida para o casamento e para a vida doméstica”,
o valor da mulher estava na sua condição maternal (VIEIRA, 2002, p.
30).
A partir da segunda metade do século XX, a multiplicidade nos papéis das mulheres (e homens) e suas respectivas funções sociais começam a mudar a partir da inserção das mulheres no mercado trabalho (SANTOS, 2016). A saúde mental das mulheres no trabalho só pode ser entendida a partir da contextualização de várias dimensões da vida, por exemplo, o trabalho que realizam no âmbito doméstico. Se por um lado a realização profissional das mulheres tenha melhorado sua autoestima, o acúmulo de papéis, o aumento do número de família monoparentais chefiadas por mulheres e a discriminação em relação ao gênero têm trazido maiores índices de transtornos psicológicos em mulheres quando comparadas com homens (DINIZ, 2004).
É preciso salientar que o maior número de famílias monoparentais são chefiadas por mulheres negras, que padecem pela carência financeira e falta de suporte social para o cuidado dos filhos. As mulheres sofrem pelo fato dos filhos permanecerem longas horas sozinhos e expostos a perigos presentes nos locais de moradia. A longa jornada de trabalho, associada ao estresse de dormir pouco e passar um número grande de horas se deslocando da periferia para o local de trabalho, são também fatores que prejudicam a saúde física e mental.
É importante mencionar ainda a exposição a situações de risco no próprio trabalho, como é o caso do assédio frequente nas relações entre patrão-empregada. As mulheres pobres, desamparadas, imigrantes, refugiadas, indígenas recebem pouca atenção em todo o continente americano. A ameaça da perda de emprego no caso de gravidez ou a dificuldade de acesso à promoção ou mesmo rebaixamento de cargo são fontes de pressão sobre as mulheres que acabam postergando o casamento ou a maternidade, ou até mesmo abdicam destes papéis em função do investimento no projeto profissional (DINIZ, 2004). Tais condições psicológicas, sociais e institucionais podem trazer prejuízos sérios à qualidade de vida.
As mulheres executam mais tarefas familiares que os homens, mesmo quando ambos os parceiros trabalham em tempo integral. As pesquisas de Rexroat e Sheman (1987) citadas por Bee (1997) mostram que a carga semanal de trabalho delas possui várias horas a mais – o que intensifica o conflito proveniente da interação casamento-família-trabalho e os impactos na saúde mental – uma vez que os papéis sexuais tornam-se mais tradicionais após o nascimento de um filho.
Na vida em casal, apenas cerca de ⅕ do trabalho doméstico é realizado pelos homens. O mais curioso, é que sentindo-se “encarregadas”, repetindo um lugar de subalternidade em relação ao trabalho doméstico, muitas mulheres sobrecarregadas, sentem-se agradecidas pela parca “ajuda” realizada pelos cônjuges, muitas das vezes a custa de desgastes na relação, em função dos “pedidos reiterados de companheirismo”.
Embora as mulheres ainda apresentem índices de mortalidade mais baixos do que os homens na maioria das áreas, conforme elas entram na força de trabalho essa realidade muda. A tendência a procurar atendimento preventivo de forma mais frequente que os homens pode interferir na disponibilidade de informações de saúde, cujos dados apontam índices mais elevados de sintomas (Brown, 1995). O índice de mortalidade materna no Brasil, segundo Diniz e De Bolle (2020) é um indicador importante que revela a desigualdade na economia do cuidado com as mulheres.
Três fenômenos contemporâneos que têm um impacto profundo sobre a saúde
mental da mulher: a violência, o exercício de múltiplos papéis e a “feminização da pobreza” que
ocorre em todo mundo (DINIZ, 2004). O caráter informativo ou denunciatório
desta temática tem como objetivo provocar mudanças nas decisões referentes às
políticas públicas (na maior parte das vezes representadas por homens). Trata-se
de incentivar uma transição de valores em nossa cultura, incluindo investimento
financeiro em políticas para promover a equidade de gênero.
Dentre algumas ações possíveis, propõe-se inserir na agenda de discussões a extensão do tempo conferido para licença paternidade, isonomia salarial (a renda média das mulheres não alcança 60% do rendimento médio dos homens) e promoção do cuidado para com as mulheres. É preciso desconstruir o estereótipo de exclusividade da função de cuidadoras para as mulheres.
A paternidade não pode ser reduzida ao papel de provedor financeiro e omissão de participação na rotina. A realidade vivida na Finlândia no que se refere às políticas relativas à maternidade e vida familiar é ainda um sonho para o Brasil, que muito precisa ainda desenvolver a cultura da economia de cuidado. Questionar os modelos restritivos de casamento, família, maternidade e paternidade é função de cada cidadão e atinge diretamente a saúde das mulheres.
Os tempos de trabalho precisam ser revistos, pois a cada dia a tarefa de conciliar cuidados dos filhos, consigo própria e com as demandas profissionais e conjugais tem se tornado insustentável. A não-reprodução de situações de dominação e opressão contra a mulher passa pela escuta de nossa cultura. A notificação de casos suspeitos e ou confirmados de transtornos mentais relacionados ao trabalho e as ações de vigilância em saúde do trabalhador deve considerar o gênero como categoria de análise.
À medida que o desemprego aumenta – questão de saúde – as mulheres são duas vezes mais prejudicadas que os homens. Dos casos de adoecimento psíquico notificados em Goiás, 79% foram categorizados como pertencentes ao sexo feminino. Nesse sentido, o gênero é uma categoria de análise importante para discutirmos a situação de saúde em Goiás, que ratifica – a partir dos dados do Sistema Nacional de Agravo de Notificações – SINAN (COUTINHO & SANTOS, 2021; DINIZ, 2004) – a presença de transtornos de humor, transtornos neuróticos, do estresse e somatoformes nas trabalhadoras de Goiás e também do Brasil. É preciso mais cuidado para as trabalhadoras e mães que historicamente ficam sozinhas com a carga do cuidado com outro ser humano. A vivência da maternidade é um trabalho e deve ser respeitada e valorizada, tornando possível estar no mundo não só como mulheres cuidadoras, mas mulheres cuidadas.
Referências
BEE, Helen. Desenvolvimento Social e da Personalidade no início da vida adulta. In: _____. O ciclo vital. Tradução Regina Garcez. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 412-452.
BROWN, Fredda Herz. O impacto da morte e da doença grave sobre o ciclo de vida familiar. In: Carter, Betty; McGoldrick Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma Estrutura para a Terapia Familiar. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese. 2 ed. Artmed, 1995, pp. 393-414.
COUTINHO, Ana Flávia e SANTOS, Elise Alves. (2021). Análise de dados do SINAN de transtornos mentais relacionados ao trabalho. Disponível sob solicitação para: nucleodepsicologiacerestgo@gmail.com
DINIZ, Débora; DE BOLLE, Monica. As Mulheres na Pandemia e a Economia do Cuidado. Transmitido em 03/08/2020. Acesso em 23/03/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uxdh2Pxi4es
DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.
SANTOS, Elise Alves. Novos tempos para os homens. Revista Urologia em Goiás. Ano 1, nº 2, maio/julho de 2016, pp. 11-12.
VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Antropologia e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, pp. 84.