Se é a fonte social do sofrimento a que mais devasta o ser humano, seguimos com Freud (1930) na perspectiva de tornar a clínica da saúde mental do trabalhador um instrumento de mitigação dos danos trazidos pelos vícios de linguagem cometidos nas relações interpessoais. Questões como a importância do nome próprio podem estar ligadas a diversos aspectos presentes na definição de casos de transtornos mentais relacionados ao trabalho (TMRT), que envolvem uma série de sintomas e diagnósticos dos mais variados (Brasil, 2019).
Assim, o trabalhador que tenha manifestado quaisquer das descrições de casos de TMRT, não deve ser chamado de “chorão/chorona”, “medroso”, “complicado” ou “problemático”, nem rotulado por quaisquer diagnósticos. A defesa pela vida passa pela defesa do nome próprio, que também é o nome social escolhido pelo próprio trabalhador. Na falta deste documento ou desta informação, pergunte ao colega como ele prefere ser chamado. Pensar e rever nossas práticas discursivas nos ambientes de trabalho são medidas de prevenção aos possíveis agravamentos da saúde mental dos trabalhadores.
Freud (1901/1996) ao escrever sobre os lapsos da fala demonstrou que mesmo sendo aparentemente simples, eles podem ser explicados pela interferência de uma ideia meio suprimida que está fora do contexto intencionado. Esquecer o nome de alguém está dentre os vários exemplos que cita em Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana. A distorção de um nome, quando intencional, equivale a um insulto (idem, p. 94), os floreios arrogantes, erros propositais na articulação fonética do nome, a incapacidade de diferenciar nomes de colegas, a substituição de um nome por outro, cuja carga afetiva se caracteriza por tons de exagero, sarcasmo ou ambiguidade (“querido”, “querida”) ou apelidos não-consentidos caem na mesma esparrela.
A distorção de um nome tem o mesmo sentido de seu esquecimento; fica apenas a um passo da amnésia completa. Freud cita o trabalho de Ernest Jones para dar relevo ao fato de que “não há meio mais seguro de afrontar alguém do que fingir ter esquecido seu nome; assim se transmite a insinuação de que a pessoa tem tão pouca importância a nossos olhos que não damos ao trabalho de lembrar seu nome”. Freud conta que alguém uma vez disse “Freuder” em vez de “Freud”, por ter pouco antes proferido o nome de Breuer, e que, em outra ocasião, falou do método de tratamento “Freuer-Breudiano”, provavelmente era um colega não muito entusiasmado com o trabalho desenvolvido por Freud e Breuer. O exemplo é antigo e também muito atual.
Em fevereiro deste ano, foi veiculada a notícia de que a prefeitura de Goiânia terá de pagar a indenização no valor de 20 mil reais à servidora que sofreu assédio moral no trabalho, chamada de “doentinha” e “bichadinha” (Silva, 2022).
Não dizer o nome próprio das pessoas expressa o não-dito da falta de entusiasmo em realçar a diferença que cada trabalhador traz em sua subjetividade, que em última instância significa desumanizar o trabalhador. Veja como as expressões verbais direcionadas a um trabalhador podem configurar-se em condutas de assédio moral no trabalho (HIRIGOYEN, 2004): generalizar nomes ou apelidos, chamar todos os trabalhadores de “Zé”, por exemplo, ou referir-se com tom pejorativo por meio de expressões como “chão-de-fábrica” ou “os peões”, “badecos”, e até mesmo a generalização « pessoa », cuja categoria remete a um dispositivo excludente já que traz a ideia – proveniente da origem romana do vocábulo teatral persona – é de que alguém se reduziria a uma máscara sobreposta ao rosto.
O nome próprio, segundo Gori (1998, p. 138) “não tem que significar” nem mesmo um adjetivo qualquer, pois eles remetem a eles mesmos. Fazer significar um nome é o mesmo que cometer um sacrilégio, transgredir um tabu, realizar um sacrifício que desnuda o caráter insustentável e evanescente das marcas de nossa identidade e filiação.
É no mínimo elegante o alerta para o uso de categorias que tomam o todo da identidade de um trabalhador por uma parte das suas características ou vínculos de trabalho, tal como se diz que fulano é aquele deficiente, doente, comissionado, ou estagiário etc., como se o sujeito fosse reduzido a uma determinada condição ou particularidade de sua existência.
Quando um trabalhador passa por alguma situação em que sua produtividade ou sua disponibilidade para o trabalho sofre um decréscimo, por vezes ele recebe a pecha de “problema”, pois aquele que o julga sem conhecer sua história, desconsidera – por ignorância – as circunstâncias vividas pelo trabalhador e os mecanismos, inconscientes ou não, utilizados para dar conta de lidar com o sofrimento.
Outra distorção comum, em especial no mundo empresarial, é a substituição de “trabalhador” por “colaborador”, “associado” ou outra terminologia que enfoque o espírito participativo, ao invés da pirâmide hierárquica (Gosdal, 2016, p. 100) ou da diferença de classes. Um dentre tantos modismos de mau gosto, que subsume o peso que este nome tem enquanto conceito, cidadania, política pública, direitos humanos e trabalhistas. Trabalhador é, segundo a Portaria de Consolidação Nº 5, de 28 de setembro de 2017, todo aquele que independentemente de sua localização, urbana ou rural, de sua forma de inserção no mercado de trabalho, formal ou informal, de seu vínculo empregatício, público ou privado, autônomo, doméstico, aposentado ou demitido. Todo trabalhador é objeto e sujeito da Vigilância em Saúde do Trabalhador.
Seis anos depois de escrever a Psicopatologia da Vida Cotidiana, Freud incluiu uma grande nota de rodapé, que prefiro citar literalmente:
Pode-se também observar que são especialmente os aristocratas que se inclinam a distorcer os nomes […] a quem consultam, donde podemos concluir que, em seu íntimo, eles os desprezam, apesar da cortesia com que costumam tratá-los. (…) poucas pessoas conseguem evitar uma ponta de ressentimento ao descobrirem que seu nome foi esquecido, particularmente quando tinham a esperança ou a expectativa de que ele fosse lembrado (…) já que o nome é parte integrante da personalidade (Freud, 1901[1907]/1996, p. 95).
Sabendo do contexto sócio-histórico da sociedade vienense em que Freud viveu, entendemos a identificação dos aristocratas. No Brasil, em nossa realidade contemporânea sabemos que as sutilezas da manipulação psicológica do mundo do trabalho extrapolam o uso pelos aristocratas e se estendem em quaisquer status sociais, aparentemente onde a própria subjetividade dos agressores em potencial esteja fragilizada em sua própria auto-afirmação.
Por outro lado, Freud faz lembrar, a partir das considerações de Jones, que poucas coisas são mais lisonjeiras para a maioria das pessoas do que serem cumprimentadas pelo nome próprio. E cita o caso da grata surpresa de quando um personagem importante como Napoleão se faz mostrar como um grande líder, mestre na arte de bem relacionar-se com seus recrutas; em meio à desastrosa campanha da França, em 1814, ele deu uma surpreendente prova de sua memória nesse sentido. Numa cidadezinha perto de Craonne, lembrou-se de que conhecera o prefeito De Bussy há mais de vinte anos. De Bussy encantado com o reconhecimento pôs-se imediatamente a serviço de Napoleão com zelo extraordinário.
No contraponto da atitude de Napoleão, temos diversas condutas e escolhas nas relações interpessoais cujos registros psíquicos vão se acumulando para o desencadeamento de casos de TMRT em suas mais variadas possibilidades de manifestações (Brasil, 2019). Estamos falando do mais imediato contato com o trabalhador, ou seja, o vocativo utilizado para lhe convocar, que ao ser substituído ou apagado, desvaloriza o nome próprio, despersonalizando o trabalhador, reduzindo-o à subordinação da escolha do outro por um nome que não lhe é próprio.
Reiteramos o canal de comunicação com o Núcleo de Psicologia do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador para demandas de supervisão e suporte técnico em ações e projetos de vigilância em saúde mental do trabalhador (nucleodepsicologiacerestgo@gmail.com).
Sugiro ainda que se busque um psicanalista para empreender junto a você a sua análise pessoal, acompanhada de seus atos, falhos ou intencionais. Haja vista que os nomes e referências ditos ou não-ditos, dizem mais de quem os pronuncia ou os relega ao apagamento, e mais cedo ou mais tarde, as formações de compromisso retornam e reclamam seu justo lugar.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação Nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 190, 3 de outubro de 2017. Seção 1, p. 360.
_______. Ministério da Saúde. Manual Técnico do Curso Básico de Vigilância em Saúde do Trabalhador no Sistema Único de Saúde [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde; Fundação Oswaldo Cruz. Brasília, 2018.
_______. Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública. Nota Informativa Nº 94/2019 – DSASTE/SVS/MS. Orientação sobre as novas definições dos agravos e doenças relacionados ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Brasília, 2019.
FAIMAN, C. J. S. Saúde do Trabalhador: possibilidades e desafios da psicoterapia ambulatorial. São Paulo: Casa do Psicólogo. Coleção Clínica Psicanalítica, 2012.
FREUD, S. Lapsos da fala. In: _____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VI. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1996.
_______. O Mal-estar na civilização. In: ______. O Mal-estar na Civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930-1936). Obras completas v. 18. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1930/2010.
HIRIGOYEN, M. F. Malaise dans le travail: harcèlement moral démêler le vrai du faux. La découverte: Paris, 2004.
GORI, Roland. A decisão do nome. In: GORI, Roland. A prova pela fala. Sobre a causalidade em psicanálise. Tradução de Mirian Giannella. São Paulo: Editora Escuta. Goiânia: Editora da UCG, 1998, p. 121-139.
GOSDAL, Thereza Cristina. Histórico das relações de trabalho e seu reflexo na organização e gestão do trabalho: do assédio moral ao assédio moral organizacional. In: MACÊDO, Kátia Barbosa et al. Organização do trabalho e adoecimento: uma visão interdisciplinar. Coletânea de artigos. 6º Congresso Internacional sobre Saúde Mental no Trabalho. Goiânia: Editora PUC GOIÁS, 2016, pp. 93-109.
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; COLLADO, Francis Garcia. Prólogo. In: ______.Para além da biopolítica. São Paulo: sobinfluência edições, 2021.
VERDI, M.; BUCHELE, F.; TOGNOLI, H. A educação em saúde no contexto da atenção básica de saúde. Educação em saúde [Recurso Eletrônico]. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010, p. 25-41.