Ensaios

Sobre exercer a psicologia

O dia do (a) psicólogo (a) vem aí e todo ano paramos para lembrar que durante todos os outros dias do ano, os psicólogos mantêm um compromisso comum com a qualidade dos serviços profissionais que presta à coletividade. Compromisso com a construção da cidadania, seu fundamento enquanto ciência e profissão.
O dia 27 de agosto foi escolhido para relembrar a data da regulamentação da profissão por meio da Lei nº 4.119/1962. Este ano (2022) o Brasil completa 60 anos de regulamentação da psicologia enquanto profissão. Goiás conta com 49 anos de história da criação do primeiro curso de Psicologia. Depois disso, outras tantas faculdades foram criadas e formam psicólogos que hoje são mais de 425.968 no Brasil e 12.508 em Goiás. Sendo Goiás o 11º Estado com maior número de psicólogos do país (CFP, 2022).
A psicologia como profissão tem uma história de ser revolucionária, de descolar-se da filosofia e da religião, de abandonar a ignorância e buscar um papel subversivo diante do status quo. A história da profissão é uma história de conquistas, de capacidade de transformar para além das aparências, de questionar para mudar.
A Psicologia, para além de uma profissão, mercado, sustento e emprego, representa uma identidade em que ser psicólogo é adotar um paradigma, situar-se diante princípios, forma de responsabilidade diante da vida, de olhar criticamente o mundo. Tornar-se psicólogo é perder a ingenuidade, mas ao mesmo tempo reconhecer a fragilidade diante do humano. O conhecimento cobra um investimento e a ignorância é um lugar confortável. E temos hoje tantos modismos que defendem conhecimentos tão confortáveis quanto enganosos.
O Código de Ética do Psicólogo traz em ser Artigo 1°, que é dever do psicólogo prestar serviços psicológicos utilizando “conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional” (CFP, 2005). Além disso, nossas próprias experiências de tratamento são fundamentais se quisermos nos dispor a tratar de alguém, para que assim o próprio sujeito que sofre possa forjar seu tratamento junto a este profissional em formação continuada, sempre inacabada. Todavia, a experiência não dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo ou mesmo a especulação, mas força a não dispensar a observação dos fatos (SANTOS, 1987/2018).
Quem reconhece que a própria tarefa é árdua, senão impossível, desperta medo, descrença ou incômodo em quem assume o lugar perene de suposto saber e que se mete a dizer que por ter feito um curso qualquer está pronto e acabado para lidar com problemas alheios, pois teve “sua própria experiência”. Na época em que explodiu a moda coaching, parece que alguns profissionais (inclusive psicólogos!) os achavam tão sedutores no que se refere às promessas de intervenção no comportamento que passaram a se empenhar para também se denominarem coaches. Nesse sentido, Freud (1926/2014) ponderou:
Quando se levanta uma questão da física ou da química, quem sabe que não possui “conhecimento especializado” guarda silêncio. Mas se nos arriscamos a fazer uma afirmação de natureza psicológica, temos de esperar julgamento e contradição vindos de toda a parte (…). Cada qual tem sua vida psíquica, então cada qual se considera um psicólogo. Mas isso não me parece bastar como qualificação. Conta-se que uma mulher se oferecia para trabalhar cuidando de crianças e, ao lhe perguntarem se também sabia lidar com bebês, respondeu: “Claro, eu também já fui bebê”. (FREUD, 1926/2014, p. 137)

Assim, misturaram-se profissionais com alguma experiência e outros que se aventuravam a oferecer serviços ainda que sem recursos teóricos para sustentar a observação e a escuta técnica qualificada. Para muitos bastava eleger um líder da autoajuda e máximas convocatórias da felicidade para ofertar abstrações motivacionais de cunho individualista.
Logo, os psicólogos e demais profissionais de saúde mental viram sua área de competência ser infringida por propostas pós-modernas de trabalho precarizado, de gente que em sua maioria, tentando sair das condições de trabalho insatisfatórias, baseados em modismos de conteúdos questionáveis para se aventurar em “novas” propostas e antes de tudo tentar salvar a si próprio do mal-estar no mundo do trabalho.
Nesse sentido, vemos que a adesão a tal mentalidade tem forte interesse mercadológico. Grandes instituições como a Rede Globo, por exemplo, se vendeu para o Instituto Brasileiro de Coach (IBC) ao inserir uma cena em uma novela de horário nobre, “O outro lado do paraíso” (2017), para promover coaches e desfazer das terapias psicológicas. Promover tais “metodologismos” incentiva a sociedade a se colocar na contramão da defesa por profissionais competentes, responsáveis e especializados e a acreditar que podem ser substituídos por coaches, consteladores, executores de círculos integrativos, charlatães e amadores, especialmente porque tais iniciativas são trabalhos menos qualificados e mais baratos para se contratar.
Figueiredo (1997) apontou que alguns psicólogos e alguns psicanalistas menos sérios viraram conselheiros sentimentais e modelos de comportamento charmosos. Quase 20 anos após esta crítica de Figueiredo para o campo da psicologia, vemos, com o auxílio da mídia, os modismos de entendimento acerca do humano serem incorporados à vida cotidiana de variadas camadas da população. O coaching, a constelação familiar, o eneagrama, a “lei da atração”, as terapias de autoajuda, etc. convertem-se em metodologias que encobrem uma visão de homem e de mundo altamente subjetivista e individualista.
O filme, “Eu, Daniel Blake” (2016), ilustra a tendência de contratação de pessoal sem qualificação especializada para atender e avaliar a condição de saúde de um trabalhador. É sabido que lideranças atuais de hegemonia científica e política, exercidas pelos países norte-americanos e mais recentemente pelos latino-americanos, têm desfavorecido a formação das ciências humanas.
Com isso, essas novas metodologias assimiladas pela sociedade têm se tornado uma forma de manter a ilusão da liberdade e da singularidade de cada um, em vez de compreender e explicar o que há de ilusório nessas ideias (FIGUEIREDO, 1997). É assim que a psicologização da vida quotidiana tem nos levado a pensar o mundo social e a nós mesmos a partir de uma visão bem pouco crítica.
A vertente psicológica que se liga aos modismos popularizados tem servido para sustentar a palavra de ordem “cada um na sua, pensando os seus problemas e defendendo os seus interesses e a sua felicidade” (FIGUEIREDO, 1997, p. 87). Numa mistura de concepções do senso comum ou baseadas em teorias psicológicas, em pressupostos humanistas sobre a liberdade do homem e num estilo de administração empresarial nitidamente comportamentalista, esse discurso (que soa como o de um pastor protestante americano, e isto é mais do que uma coincidência) prega um paradoxal reforçamento do “eu” com sua submissão a um conjunto de regras de gerenciamento da própria vida. Segundo este autor, a industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição de prioridades científicas.
Os coaches não são reconhecidos pelos Conselhos Profissionais, conforme Nota do CRP 01 (2019): “Não reconhecemos o Coach e o Analista Comportamental como profissões haja vista que suas práticas interferem diretamente nas práticas profissionais da Psicologia (Art. 13º da Lei 4.119/62)”. Também não constam na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Previdência (BRASIL, 2022).
No entanto, a força do apelo é grandiosa, bem como os interesses que subjazem essas iniciativas. A questão é que, com ou sem formação por lugares coachianos, isso que se propõe tem se mostrado um tanto catastrófico. Justamente por não haver estudo sistematizado daquilo que somente o curso de Psicologia em sua abrangência tem a oferecer. Os coaches se utilizam de conhecimentos advindos da Psicologia, de forma duvidosa e clandestina, colocando em risco a população (CRP 01, 2019).
Assim, as proposições da moda não preenchem exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina, ao contrário, pertencem a uma massa de coisas ditas, do surgimento de enunciados desprovidos de estudo e de escuta técnica qualificada.
No mundo em que vivemos, ou ainda, sendo humanos como somos, o trabalho do psicólogo está longe de ser desnecessário e extinto, ainda que a onda mercadológica do momento ofereça produtos ingênuos e sem discernimento para abordagem das questões humanas. Na ótica das ciências da gestão, porém, o trabalho é desconectado de um sentido político, de uma realidade histórica, onde os trabalhadores não são seres humanos, são recursos humanos.
Conforme CFP (2019) é preciso fundamentar sua atuação profissional, obrigatoriamente, em conhecimentos, técnicas e instrumentos psicológicos reconhecidos cientificamente; construir argumentos consistentes da observação de fenômenos psicológicos; empregar referenciais teóricos e técnicos pertinentes.
As “novas metodologias” utilizadas na contemporaneidade no campo da saúde mental mostram-se, em última análise, como mecanismos de domínio psicopolítico do trabalhador ou de manipulação psicológica como diria o professor Roberto Heloani (2003). O nosso papel de analistas de saúde comprometidas (os) com a ciência e o conhecimento é o de incomodar. Feliz dia do incômodo e, também, feliz dia do psicólogo.

Referências

BRASIL. Classificação Brasileira de Ocupações. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/downloads.jsf Acesso em: 04 de agosto de 2022.

BRASIL. Lei Nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Disponível em: https://transparencia.cfp.org.br/wp-content/u ploads/sites/19/2017/05/Lei-4119_1962.pdf Acesso em: 24 de julho de 2022.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução CFP Nº 010, de agosto de 2005. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, 2005.

_________. Conselho Federal de Psicologia. Resolução Nº 06 de 29 de março de 2019. Institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP nº 15/1996, a Resolução CFP nº 07/2003 e a Resolução CFP nº 04/2019.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). A Psicologia brasileira apresentada em números. Disponível em: http://www2.cfp.org.br/infografico/ quantos-so mos/. Acesso em: 26 de julho de 2022.

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO DISTRITO FEDERAL (CRP 01/DF). Nota orientativa sobre a prática de coaching. Comissão de Orientação e Fiscalização (COF), 26 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.crp-01.org.br/page_3908/Nota%20t%C3%A9cnica%20sobre%20a %20pr% C3%A1tica%20de%20Coaching Acesso em: 04 de agosto de 2022.

Eu, Daniel Blake; Direção: Ken Loach. Roteiro: Paul Laverty. Reino Unido, 2017. (101 min).

FREUD, S. A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial (1926). In: ______. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Obras Completas v. 17. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1926/2014.

FIGUEIREDO. L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 1997.

HELOANI, J. R. Gestão e organização do capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

O OUTRO LADO DO PARAÍSO; Criador: Walcyr Carrasco Direção: André Felipe Binder e Mauro Mendonça Filho. TV Globo. Brasil, 2017 (172 episódios).

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 1987/2018.

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