É fim de ano, a cidade está vazia, o trânsito nas ruas tranquilo, o despertar da manhã surge meio caduco. Os trabalhadores que não estão em férias ou recesso perambulam em seus carros, trocam os passos cansados à espera de um novo ano que possa trazer renovação.
Taís – trabalhadora a quem vou preservar a identidade dando este nome – dirige seu carro em direção ao trabalho presencial, depois de muito teletrabalho realizado nos períodos duros da pandemia. Sai de casa e lembra do conserto que precisa providenciar para seu carro que foi recentemente batido num certo ponto por um “motoboy”, que na verdade era um homem bem adulto, pobre, preto e mal pago e que se atropelou em cima de seu carro na pressa das entregas que precisava fazer.
Ela vai parando nos semáforos, que fazem a coreografia da frustração. A cada quarteirão, o que estava aberto se fecha, como se estivesse esperando ela chegar perto, para então se fechar caprichosamente. Ela espera abrir o sinal verde apertando o canto da boca, aumentando suas rugas de expressão como se isso aliviasse um pouco a espera forçada.
Embora seu movimento “natural” fosse o de seguir rodando, ela ia parando, pisando no freio, para logo depois passar ao acelerador. Seu passo sob rodas queria se calcular fluido, contínuo nos pedais, mas a interrupção se impunha, um corte de luz vermelha se impunha.
O carro ao lado avança e no torpor do começo do dia Taís avança também, sem pensar aciona o acelerador, pois “o sinal abriu”. Mas um lapso de lucidez a faz olhar pra cima e ver que o maldito sinal ainda estava fechado. Era apenas um transgressor transformando o espaço coletivo conforme seu valor individual.
Sem perceber ela acaba furando o sinal vermelho, mas só o primeiro, o segundo e o terceiro foram atravessados já bastante acordada para analisar o risco a ser assumido de ganhar alguns minutos de espera ou segundos… O fantasma trans se apossou de Taís, querendo ela também seguir seu caminho transformando condições, transformando-se, pelo menos no trânsito, numa dirigente livre das amarras luminosas.
No trajeto para o prédio onde trabalha, ela se dá conta que o motorista transgressor era um colega, funcionário público que sempre vira nos arredores. Após alguns meses de observação coletiva, este homem foi identificado como aquele que “bate o ponto e vai embora”. Ele já havia sido notado anteriormente por Taís e outras colegas, aprisionadas aos ponteiros invisíveis do relógio computadorizado.
A revelação é intimamente escandalosa, ele bate no ponto da injustiça que acidenta nosso transporte para o trabalho. Todavia, o bochicho é estranhamente silencioso, como se as pessoas não pudessem deixar de escutar a vontade própria de ter o privilégio de voltar a trabalhar em casa. Nessa altura, o teletrabalho já tinha sido extinguido após ciclos de vacinação contra a COVID 19.
A trabalhadora dedicada, cumpridora de horário e mais que isso, realizadora de trabalhos importantes para o serviço público, se incomoda com essa espécie de liberdade torta que faz ela se deparar com aquela figura trapaceira todos os dias, burlando o sistema de frequência.
As teorias da conspiração começam a surgir, os fantasmas primeiros são de Taís. Estava diante de seus olhos, o homem que representava os fantasmas do clientelismo: era um amigo do rei que podia executar ordens que permitissem ele não ficar para trabalhar. Batia seu ponto na ida e na volta do turno matutino e nada mais fazia para fazer jus ao salário que recebia? Não é possível, o homem devia ter um problema de saúde e foi liberado para fazer teletrabalho. Será? seu esquema não podia ser revelado, senão muitas pessoas iriam querer o mesmo. Mas houve tanta economia, e tanta gente compromissada na época do trabalho! Taís não podia ser ingênua de pensar que os funcionários seguiram fazendo suas funções quando ninguém podia ver de perto.
Um dia ela adianta o passo para chegar ao suposto funcionário fantasma e contar ao “decrépito” (ela fala dele assim entre as quatros paredes de sua cabeça mas não ousa desrespeitá-lo a par de sua raiva despalavrada legítima) com uma suavidade estudada que ele a havia influenciado no trânsito mesmo sem saber que estava fazendo isso. Seguindo seu avanço apesar do sinal vermelho. Ele se ri, e conta ter percebido que meu carro sempre fazia o mesmo percurso que o dele. Taís passa a saber que tinha em comum com o funcionário fantasma o fato de que residiam na mesma vizinhança. Um sentimento de rejeição surge despontando como que dizendo “eu não sou como esse cara”.
O reconhecimento facial e intencional era incontornável, poucas são as pessoas que usam máscaras neste momento. Eles passam a se cumprimentar, comentam do elevador que não funciona. As oportunidades de saber o nome e o andar do prédio onde o espectro “trabalha” surgem e com ela a pergunta interior se ela deveria denunciar o funcionário fantasma que faz inveja a quem queria pelo menos o retorno da possibilidade de trabalhar no ambiente doméstico.
Taís encerra o último dia do ano pensando nos grandes investimentos em cursos de ética que seu chefe maior tem feito ao longo dos últimos anos. Será que ele ou a mídia gostariam que ela denunciasse o fantasma suspeito? Ou seria ela apenas a testemunha de fantasmas aprisionados em casas mal-assombradas? Taís se despede do colega perguntando a ele saindo, quando ela está chegando: “Já vai?” e ele confessa seu “ato falho” programado respondendo ter esquecido o guarda-chuva no carro. É tempo de chuva, e as histórias fantasmagóricas escorrem nas bocas de lobo da cidade.
Goiânia, 29 de dezembro de 2022.