O inconsciente é um conceito que já encontramos em autores clássicos como Spinoza, Nietzsche, Kant e outros. Mas, Sigmund Freud foi o responsável pelo fato desta descoberta, baseada em um corpo de experiências clínicas e estudos teóricos, que mostram que tal descoberta foi uma das mais importantes e revolucionárias aos profissionais que estão seriamente comprometidos com a ciência do homem.
Erick Fromm (1977), no seu texto Consciência e sociedade industrial, nos lembra que Freud descobriu em detalhes que podemos ter emoções, ansiedade, temor, tensão das quais não temos conhecimento e que sem dúvida existem no nosso sistema fisiológico e mental. Freud tinha razão antes e nos ajuda agora a entender como a angústia, a falta de identidade, a apatia e a insegurança no mundo contemporâneo são objetos de repressão nos (nas) trabalhadores(as).
Podemos dizer que a saúde mental está, na maior parte das vezes, no porão da casa de cuidados com a saúde, como se ela fosse guardada enquanto projeto de política e intervenção. Embora tenhamos várias possibilidades de análise para essa questão, chamamos atenção para certas classes de tomadores de decisões (pertencentes a determinadas classes sociais, obviamente) que tentam impedir que certos pensamentos ou propostas de vida no trabalho cheguem ao nosso conhecimento e que permaneçam na inconsciência.
A comparação do psicanalista nos permite dizer que aquilo que está inconsciente deve (no porão) ascender ao primeiro andar da consciência, ou seja, trabalhamos para que possamos ter conhecimento (ainda que limitado) sobre aquilo que nos faz, em última instância, viver ou morrer.
A psicanálise tem nos mostrado que o principal motivo de algumas repressões, recusas ou renúncias no mundo do trabalho é de caráter afetivo. A história engendrou nos homens e cada vez mais nas mulheres também, o medo de perder condições de privilégio, de se separar de propriedades e recursos acumulados, dos assentos de poder e claro, temores de nem sequer ser incluído na sociedade de consumo, mercado e espetáculo em que vivemos na contemporaneidade.
Se por um lado, temos esses riscos encobertos pelo modo de produzir a vida, por outro lado, temos os riscos iminentes gerados pela fome, pobreza, vergonha e precarização generalizada das condições de produzir e manter a vida enquanto trabalhadores. Desde cedo, a família superadaptada à lógica de exploração transfere a cultura da ameaça às suas crianças, treinadas desde cedo para serem na idade adulta, trabalhadores que não fracassem dentro de uma sociedade perversa. Sociedade neoliberal, esta do cansaço constante, demasiadamente rígida e impostora que não propicia sequer tempo para sonhar.
Cada sociedade cria uma forma própria de repressão, de “inconsciência social” (Fromm, 1977, p. 130) necessária ao seu funcionamento. Esse “mundo velho de guerras” tem um esquema pré-fabricado que determina qual parte do conteúdo se fará consciente e qual parte permanecerá inconsciente. Assim, muitas práticas psicológicas (com alívio percebemos que tem sido vigiadas e denunciadas por meio de notas técnicas pelos conselhos profissionais) defendem ações irracionais e pouco críticas para enfrentar condições enlouquecedoras de vida no mundo. Tais práticas vão proliferando consensos que transformam o imoral em moral, o irracional em racional, invertendo a luta pelas transformações pela dignidade dos pactos sociais civilizatórios, pela saúde, pela vida…
Nesse sentido, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Estado de Goiás (CEREST Goiás), a partir do trabalho de suas psicólogas[1], tem trabalhado numa perspectiva de vigilância epistemológica para oferecer e divulgar materiais que auxiliem na promoção responsável da saúde mental dos trabalhadores. São exemplos destes materiais as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas para Transtornos Mentais e a Nota Técnica que estabelece medidas de prevenção, enfrentamento e tratamento para o assédio moral no Estado de Goiás[2].
A saúde mental do trabalhador e da trabalhadora (SMTT) enquanto política pública ainda ocupa um lugar marginal muitas vezes, que não possui visibilidade e investimento. Estamos então em condição de pouca visão, às vezes cegueira, ou ainda, estamos inconscientes da função humana de buscar conhecer, observar o que existe “dentro e fora” dos nossos processos de saúde e adoecimento.
Em consonância à Política Estadual de Atenção, cuidados e proteção da Saúde Mental do Estado de Goiás (Lei Nº 21.292, de 6 de abril de 2022) o I Seminário sobre saúde mental do trabalhador e da trabalhadora: reflexões sobre a prática clínico-institucional, realizado pelo CEREST Goiás em novembro de 2023, cumpriu justamente o objetivo do art. 3º, inciso I: incentivar a realização de (…) seminários com educadores e especialistas em saúde mental, que esclareçam a questão da violência psicológica, saúde emocional, adoecimento mental e cuidados.
O homem é livre no sonho e podemos afirmar, com base em Fromm (1977) que este é o único estado em que a liberdade humana se estabelece de forma praticamente completa. Quem é impedido de sonhar, pode apresentar sintomas de perturbações mentais. Em nome da saúde mental, faço um elogio aos sonhos de quem trabalha.
A homenagem não é para reforçar uma ideia de algo utópico, distante ou de “outro mundo” de processos primários[3], mas sim de realçar o sonho como produção inconsciente que nos revela o desejo de alavancar melhores condições de vida na saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras (SMTT). Assim, o sonho é um trabalho do psiquismo que deve ser ouvido, interpretado, pois é difícil obter conhecimento de algo que não se designe com as palavras. É com a voz dada à linguagem que abrimos terreno para o processo secundário, vigilantes ao que ameaça os projetos e intervenções de cuidado significativos para a vida.
E como o inconsciente pode chegar a ser consciente? Fromm (1977) elabora uma resposta: quando desaparecer o conflito básico entre os interesses de uma sociedade e os de cada indivíduo dessa sociedade. Se isso ocorresse, a sociedade não teria que deformar, ameaçar, nem “lavar cérebros”, tampouco seria necessário bloquear a realidade para que ela não fosse percebida por nossa mente consciente.
Referências:
FROMM, Erich. Consciência e sociedade industrial. In: FORACCHI, Marialice Mencarini; MARTINS, José de Souza (org.). Sociologia e Sociedade: Leituras de Introdução à Sociologia. 1. ed. LTC, 1977, p. 126-134.
GOIAS. Lei Nº 21.292, de 6 de abril de 2022. Institui a Política Estadual de Atenção, Cuidados e Proteção da Saúde Mental. Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br /api/v2/pesquisa/legislacoes/105292/pdf#:~:text=ABRIL%20DE%202022-,Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Estadual%20de%20Aten%C3%A7%C3%A3o%2C%20Cuidados%20e%20Prote%C3%A7%C3%A3o%20da,Art. Acesso em:10 de jan de 2024.
[1] A autora deste texto e a psicóloga do CEREST Goiás Ana Flávia Coutinho.
[2] Disponíveis em: https://www.saude.go.gov.br/files/saude-do-trabalhador/cerest/DDT-TMRT%202023.pdf
[3] Na obra freudiana denomina-se “processo primário” o que se dá na primeira infância ou no sonho, onde isoladas dos estímulos externos ficamos, de certa forma, livres da necessidade de enfrentar a realidade. Enquanto que “processo secundário” é a característica da vida normal de vigília, cuja função sócio-biológica essencial é cuidar da sobrevivência.
Goiânia, 30 de janeiro de 2024.