Ensaios

Discurso da festa de lançamento do livro

Boa noite, gente querida.

Peço licença para ler porque essas coisas de observação científica, elas podem desencadear muitas emoções e eu não quero desmanchar minha máscara-maquiagem teórica tão cedo. São tantos nomes, casos e histórias  que deixo pra falar depois no um a um pra quem quiser ouvir. Senão eu vou ter que me virar numa insanidade de agradecimentos extensos que poucas palavras não dão conta. Em ordem alfabética, gente de Anápolis, Bélgica, Brasília, Balneário Camboriú, Canadá, Goiâaaaniaaaa,  França, João Pessoa, Londres, Mineiros,  Palmas, Portugal, Rio de Janeiro, Juíz de Fora, São Miguel do Gostoso. Os convites chegaram para muitos, nem todos puderam vir. Todos e todas, gente do meu coração. 

Falei para alguns de vocês, queria que a festa fosse no dia do meu aniversário, dia 24 de abril, dia do jovem trabalhador, mas o livro não ia ser impresso a tempo, coisas dos tempos do trabalho. Desmarquei a data de abril e remarquei para hoje, dia 22 de junho. No dia 24 de abril fui então passar o primeiro dia da crise dos 40 na última casa do Freud.  Parênteses: eu aceito um prêmio consolação pra quem me deu só um abraço pelo livro, fica devendo um abraço  pelo aniversário. 

Então lá na casa do Freud, fui contando mentalmente pra ele, que eu tive muitas perdas como todo ser humano, extremamente humano, que perdi o prêmio de melhor tese pra um colega da UnB que escreveu sobre a capoeira. Merecido. Discordei com esse colega numa conversa sobre psicanálise uma vez e ele cortou a corda das relações comigo. Meu prêmio, não sei se ele tem…  eu tenho uma turma de amigos estudiosíssimos com quem posso falar e escutar um monte de assuntos e até discordar. Isso é que é prêmio. Não é?! 

 Então… sobre a ideia dessa festa. Loucura…

Durante um tempo me achei deficiente para enxergar o que era uma decisão louca de fazer uma festa dessas. O que conseguia ver era só uma desrazão econômica assumida do tipo que sai da lógica em que vivemos. Devia estar trocando de carro mas escolhi fazer a festa. Celes você lembra quando eu comprei meu primeiro e único carro até hoje, mostrando lá no estacionamento da UnB o brinquedinho novo que tinha comprado pra ir para Brasília. Isso já tem 10 anos!! Fui fazendo uma descrição desse cenário que me lembra a Salpêtrière para me ajudar a compreender alguns investimentos que cada um de vocês aqui é acionista. 
A loucura começa antes de pisar em Paris. Fui construindo a fantasia de estagiar no Salpêtrière onde Freud esteve e dessa fantasia consegui viver uma realidade. 

O dia-a-dia de contato com a vida exumada dos manuscritos de Charcot fez parte de mim. Olhos irritados pela ação dos micro-organismos dos fragmentos dos papéis antigos, garganta comprometida, uma bola de coisas foi fazendo parte do ritual de ressuscitar palavras, decifradas, alcançadas, perdidas, cansadas e diria até,  pedidas para aparecer. Família, amigos, colegas  bibliotecários, e desconhecidos ajudaram-me, sabendo ou não, a dar luz possível para às revelações emergentes das letras, das imagens, dos pensamentos e discussões que iam nascendo. 

A presença benfazeja faz bem, é redundante dizer. Mas digo com propriedade porque as ausências e a presença de pessoas em determinados lugares que conseguem ser poderosas em situações desastrosas, são adoecedoras. Breve lembrete da pandemia onde muito mais que o vírus nos fez adoecer. Em 2019 defendi o doutorado, mas ficar enfurnada em casa na quarentena interminável não me ajudou a escrever o livro. Que período tenso de adoecimento que a gente viveu. Só pra lembrar que a demora para concluir esse livro tem toda essa história que Charcot e Freud não poderiam imaginar mesmo depois da gripe espanhola. Se Charcot ajudou no tratamento de Joséphine, vimos também como as relações contemporâneas podem ser extremamente adoecedores ou curativas. 

Alguém poderia me dizer, a noite é sua, mas assim como a tristeza ou alegria.  Essa atmosfera que a gente está criando aqui vem de todos, então essa noite, só é possível porque estamos todos debaixo do mesmo céu de inverno que a gente aquece na proximidade que a gente faz acontecer aqui,  esse preto firmamento combina bem com a luz de estrela que brilha em cada um vocês, aqui  e agora. Essa festa é nossa. Encharcada do melhor de Charcot, que era um festeiro, cito Victor Hugo: A alegria não é somente alegre; é grande.

Estranho dizer, mas escolhi a festa aqui também por causa desse espaço. Ia ser difícil levar todos para Paris, e aqui que me lembra a arquitetura e a aventura de morar vizinha do Salpêtrière, de pesquisar no hospital onde Freud trabalhou. Arcos visíveis esses elementos que suportam o peso de toda uma estrutura (de um corpo com suas reentrâncias somáticas e psíquicas em extremos do não-saber que se faz conhecer).

Apareceu aí no painel uma foto minha que Alexandre tirou em frente a escultura de Pinel ao lado de um alienado da atualidade. Lembro bem da impressão que fiquei do jovem que parecia querer aparecer comigo no registro do momento atual, que queria capturar o passado. Olhos esbugalhados entre a timidez e a mostração. Assim estou aqui, agora, meio pinel com tanta coisa ainda pra elaborar, desenvolver, viver.

Outra loucura. Ia pedir para todos viessem fantasiados com a moda francesa do século XIX, mas me pareceu forçar uma camisa difícil de servir para as opções de nosso tempo. Resolvi me encharcar de nanquim noir, caneta tinteiro de escrita de Charcot pra gente bisbilhotar depois o que ele escreveu. Mas pra não falar deselegantemente no livro, chamei de pulsão epistemofílica. Rs E vocês, estão todos e todas, bonitos e bonitas com suas fantasias escolhidas para essa noite! Cheios de palavras escritas no contorno da aura de cada um, irrepetível, original.

Entrei na metáfora dos dossiês franceses que fiz descobrir e encomendei macarons cor de papel, com fita de tinta preta pra entregar de lembrança ao final. Os sabores são complexos (três sabores) Quem acertar ganha um doce! Complexos como os conteúdos que me propus pesquisar, e que tem sido pesquisados há tanto tempo e cada vez mais por mais gente comprometida. 

A brincadeira de descobrir sabores não cobra resposta, o doce, recompensa pra quem acertar ou errar é garantido. Porque o mais importante é entrar na brincadeira do palpite baseado em experiência. Além da sobremesa francesa, ofereço também os brasileiríssimos docinhos de leite em pó (meu preferido) e brigadeiros clássicos também. Mais representações de folhas e tinta…

Já falei que é um prazer ter vocês aqui. 

Também escolhi um cardápio de comida confortável com assinatura de chef e tudo. Ela poderia estar na cordon bleue, de Paris, de Londres, mas ela está aqui unindo nossos cordões coloridos,  transformando meu desejo de oferecer – pelo menos por uma noite – o banquete numa festa que gostaríamos que fosse nossa rotina de proletários. 

A noite é especial,  a autora, leitora da própria fala, conseguiu pôr de algum jeito, seu jeito de tentar transmitir o que foi apreendendo… alegria imensa de compartilhar essas próximas horas com vcs. 

Alguns de vocês estavam na festinha à fantasia que fiz em 2019 para comemorar o término do doutorado, pendurei folhas dos dossiês transcritos nas paredes e pilares para decoração. Hoje é festão, consegui coletar e unir as folhas soltas em um livro. Por hora, estou satisfeita e convido vocês para curtir os sons de diferentes estilos e épocas que nos povoam. 

Meus votos são para  que o corpo teórico, o corpo-psiquismo, o corpo-memória, o corpo seu, o meu e o nosso se embale nos extremos dos espaços que conseguimos habitar. Aproveitem a festa, senhoras e senhores ou profitez bien, monsieur et dames! 

Agora se me permitem fazer um coisa meio brega, meio chique, talvez especial… vocês me permitem sem muitos julgamentos? (Ouvi algumas respostas « sim » que me foram suficientes para finalizar meu discurso).

Pra quem a gente ama, a gente promete o céu mesmo sabendo impossível entregar esse presente, então dou a vocês o que eu não tenho, ainda que por um minuto passageiro, recebam meu pedacinho de céu que ofereço a vcs ao som de Stromae que abre a nossa pista de dança! Manda ver Dj!

E o teto retrátil do salão se abre ao controle remoto do maître da Bella Eventos

Goiânia, 27 de junho de 2024.

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