Desde a mudança de prédio do Cerest Goiás, no final de 2021, atravessamos a avenida 136 que delimita o setor marista do setor sul de Goiânia, trazendo quilos de história na forma de caixas, documentos, pastas, e materiais diversos que nos acompanham há vários anos. As coordenadoras das áreas de saúde do trabalhador solicitaram os préstimos de “santa ajuda” de nossa equipe para arrumar os armários da nossa casa de trabalho.
Comecei a empreitada, lembrando de uma conversa com colegas de trabalho sobre nossos traços obsessivos necessários para um trabalho de triagem e revisão. E é bem dizendo tal característica, que incentivamos este trabalho de arrumação que precisa de uma disponibilidade, para lançar mão da organização nossa de cada dia. Mãos à obra para enfrentar o caos dos materiais desconhecidos e esquecidos.
Desde 2015 trabalho no Núcleo de Psicologia do Cerest com o agravo de transtornos mentais relacionados ao trabalho, e como psicanalista, posso dizer que encontramos diversos conteúdos que quis chamar de “demandas reprimidas”. Escutar o que está no interior dos armários vai dando notícias da necessidade de reestruturar o serviço, aumentar a equipe, planejar a vida de trabalho. É preciso dar ouvidos para questionar o que foi escrito e não está mais atual, para compreender como o atual foi mudado em função do passado construído.
Abrimos as comportas dos armários e um mundaréu de coisa misturada vai surgindo. A arrumação faz saber que muita gente boa de serviço já fez trabalhos fundamentais dos quais se não tivéssemos notícias, estaríamos perdendo tempo com o retrabalho. Para usar a metáfora da psicanálise diria que o retorno do recalcado implica numa compulsão à repetição, às vezes por profundo desconhecimento da existência de algo que está lá, mas não se sabe ainda.
Mudança pede mudança. Para (re)existir o corpo precisa estar em movimento. O pedido das coordenadoras conclamou a exumação de corpos de papeis, que puderam ter sua devida destinação, muitos para a reciclagem, outros para o “arquivo morto”. Outros mereceram a necessária ressuscitação, sua digitalização, idealizamos a criação de espaços físicos específicos para cada agravo à saúde do trabalhador. A nomeação de cada espaço, feita pela simples etiquetação nas estantes dos armários, permitiu dar visibilidade aos assuntos que temos guardado. A tarefa parece enorme quando temos armários abarrotados. E é mesmo, por isso, fazer um “intensivo”, “uma força tarefa” pode ser uma alternativa, mas a proposta de uma pasta por dia também funciona. O importante é que mesmo com pouca disponibilidade de tempo, a proposta de cuidar dos guardados não se perca em meio às diversas demandas que cada serviço apresenta.
As atribuições do Cerest previstas na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora vão ganhando nova história no coração do Brasil, ao fim e ao cabo da arrumação, que bem da verdade, sempre deve estar em manutenção. Saber o que um serviço de saúde possui e guarda, revela sua história enquanto instituição e a história de seus trabalhadores, suas iniciativas e desistências. Muitas são as razões para as mudanças nas equipes, e para o redirecionamento dos trabalhos. De toda forma, há uma perda considerável quando servidores responsáveis por determinados serviços mudam de local de trabalho, se aposentam ou ainda, se demitem. Pior ainda, é quando os que querem continuar são impedidos em função de contratos temporários precarizados, suas produções são interrompidas.
Tenho a impressão de que por esses e outros motivos, muitos dos trabalhos em saúde do trabalhador são “crianças engatinhando”, que quando deixadas sozinhas, sem a presença de seus responsáveis, atrasam o começo de seu caminhar, manquejando desequilibrados sem onde se apoiar. Assim como a educação permanente que defendemos em saúde, o acompanhamento do trabalho quando inoperante, gera perda de autonomia e não se desenvolve, pois vão lamentavelmente perdendo a força das pernas.
Serviços como os que temos na jovem história do Brasil, também não deveriam ser abandonados. O trabalho só acontece com a força dos que podem e querem trabalhar. Quando não há concurso para admissão de novos trabalhadores, quando o dimensionamento da demanda é ignorado, quando não há respeito e valorização do trabalhador, os serviços vão ficando deficitários e em alguns aspectos tornam-se incapazes de cumprir o combinado.
Os trabalhadores que se mantém, pelos variados motivos, seguem investindo, em suas frentes de trabalho, aumentando o espaço que precisamos para guardar, ainda que temporariamente, uma história que deve ser lembrada aos jovens servidores que virão depois que nós tivermos ido embora. Esse texto tem a intenção de compartilhar essa experiência, de propor a escrita da história de cada Cerest, único em cada região.
Quando escrevemos, algo se imortaliza pela letra compartilhada. Sabemos, uma de nossas poucas certezas, que mais cedo ou mais tarde, iremos todos morrer, mas o SUS não pode morrer. Quando podemos transmitir (BARROS, 2007), mais que nossos genes, mas a preservação de experiências de importância histórica, neste caso, da conquista e defesa do SUS em ações singelas, seja a de arrumação de um armário que ganha em seus guardados, espaço e nome, confiamos no trabalho do impossível, que forjamos pela via da renovação das propostas, de planos, projetos e de ações que podem se perpetuar ao longo do tempo.
Texto publicado originalmente em https://renastonline.ensp.fiocruz.br/blogs
Referências
BACHELARD, Gaston. La Poétique de l’espace. Troisième Edition. Presses Universitaires de France. Bibliothèque de Philosophie Contemporaine, 1961.
BARROS, R. M. M. A escrita feminina. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud: UERJ, Instituto de Psicologia, 2007.
GOES, M. Santa ajuda. Canal GNT. Disponível em: https://gnt.globo.com/programas/santa-ajuda/ Acesso em: 15/02/2022. SANTOS, R. Força para continuar lutando em defesa da Saúde. In: O SUS não pode MORRER. Revista Nacional de Saúde. Edição 05. Ano 2. Set/Out 2017.