Ensaios

Minhas impressões sobre a neuropsicanálise

Voltando de Paris sem ter tido a chance de escutar Mark Solms por lá em uma conferência de poucos lugares, intitulada “O espírito, o cérebro e o mundo interno”, que seria discutida por René Roussillon, fiz então, em abril de 2018, inscrição para o ainda mais chamativo subtítulo “Imunidade – memória – trauma” da Jornada de Psicanálise organizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, seguido do workshop de “Educação em Neuropsicanálise” a ser ministrado por Mark Solms, na época presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul.
A expectativa de que Mark Solms fosse falar em francês e articular os temas da imunidade, memória e trauma entre as neurociências e a psicanálise logo foi substituída pela impressão da dominação do discurso das neurociências proferido em inglês. Solms se disse freudiano, “só queria ver as coisas mais claramente”. O que aconteceu foi basicamente uma comparação da teoria psicanalítica da mente com as partes do cérebro. Sendo que Solms defendia a consciência do id, localizado no tronco cerebral! E que, toda consciência deriva do tronco encefálico superior. A consciência não vem da superfície, ela “sobe de baixo pra cima”, dizia ele considerando o posicionamento cerebral.
Solms afirmou que a neuropsicanálise não propõe uma nova escola de psicanálise, mas pretende ligar a psicanálise à neurociência. Ele diz que quer agregar algo à psicanálise, mas não quer tomar a psicanálise como uma neurociência. Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Segundo ele, hoje temos métodos para estudar a mente que não estavam disponíveis na época de Freud. Ele recomenda algumas mudanças, que não são radicais para atualizar a teoria e tornar o trabalho clínico mais fácil, além de facilitar o entendimento aos psiquiatras e neuropsicólogos de como trabalhamos. Nesse momento, eu não queria ter sido incluída naquele “nós”, pois não me vejo trabalhando a temática do adoecimento do ser humano, de forma tão naturalizada. Mas para ele era muito natural “levar a mente para a neurociência, trazer ganhos para a psicanálise com a neurociência, testar o que não é possível na psicanálise. Trazer o progresso para a psicanálise demonstrando coisas de maneira científica, trazer aos psicanalistas pontos de vista que as neurociências oferecem.” (sic).
Aquele homem de grandes dimensões queria dar uma dimensão “científica” à psicanálise e mostrar como Freud havia errado, pois o id seria fonte de toda consciência, uma vez que o córtex se torna consciente quando ativado. A consciência viria de núcleos sinalizados no mapa cerebral. De alguma forma, Solms queria mostrar que a diferente localização do inconsciente e do id traria implicações para a clínica psicanalítica. O presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul, na oportunidade de sua conferência teceu comentários que “comprovam” ou “desatestam” afirmações de Freud. Em outro momento, Freud estava certo, pois a neurociência comprovou que não é preciso ter consciência para executar funções cognitivas. Por outro lado, Freud errou, repetia Solms, pois sendo o id fonte de toda consciência, o ego seria uma “parte da mente” que tenta reduzir a consciência do id, que aspira ser inconsciente.
“Quando a memória de longo prazo se torna consciente, proteínas se dissolvem”, Solms dizia seguro que a consciência promove a dissolução do estado de memória, sendo que cada memória são milhões de neurônios. Talvez aqui neste ponto a ideia de trauma, imunidade e memória pudesse ter sido desenvolvida. No entanto, os três dias de jornada citavam en passant, genericamente, as “maravilhas da neurociência não especulativa” sem articular a temática proposta.
Os termos psicanalíticos pareciam ser aos poucos substituídos: “conflito” por “problema não resolvido”; “reminiscências” por “memória” ou “predição baseada em experiências passadas”; “identificação” por “memória procedural”; “ação motora” por “solução automatizada”; “processo primário” por “automaticidade”, citando como o córtex – enquanto superfície – não precisa de consciência para fazer seu trabalho. É do tronco encefálico de onde vem a fonte consciente, emocional, dizia ele. Por isso que até mesmo crianças anencéfalas exprimem emoções. O “reprimido” não retorna, mas seu efeito.
Para Solms a ideia freudiana de que a biologia é uma terra de possibilidades ilimitadas é justamente o que o faz se autointitular freudiano. Cita o entendimento de Freud de que a subjetividade parte da natureza e que um dia seria possível falar de uma neurobiologia da mente que não pertence exclusivamente à psicanálise. A ênfase à determinação biológica era o foco. Ele não fala em pulsão, desacredita a pulsão de morte. Professando o que mais parecia sua nova religião, dizia acreditar que Freud deveria ter ampliado seu conceito de instinto de vida e explicou fazendo uma performance de corpo e voz com grunhidos como ocorre o prazer (que só existe quando se pode senti-lo) ou desprazer quando se aproxima ou se distancia do Nirvana, enquanto homeostase.
Solms seguiu sua apresentação citando que a teoria das pulsões era a parte mais incerta da teoria de Freud, mas a tecnologia poderia solucionar o problema de entendimento acerca de como os instintos operam. O localizacionismo parece fundamental à Solms, que estava sempre pronto a apontar (com seu laser point) o sistema pré-consciente – consciente em um lugar no espaço cerebral. Dentro da consciência no córtex, ela vindo da parte endógena do cérebro.
O neurocientista que fez formação em psicanálise, contou ter tido o mesmo analista de Anna Freud, e propôs sete necessidades emocionais instintivas do ser humano (instinto sexual, volúpia, nutrição, busca, raiva, medo, apego e brincadeira), defendendo a aprendizagem para conciliá-las. Solms considerou uma fragilidade de Freud o fato de “nunca ter certeza de como classificar as forças motrizes da mente”. Para Solms é necessário classificar e numerar os instintos emocionais homeostáticos supostos na mente. Segundo ele, este seria o objetivo para se avançar nos campos da psicanálise. Ele declara sua intenção primeira ao receber um paciente em seu consultório: saber de que emoção sofre o paciente, pois cada sentimento significa coisas diferentes.
Neste ponto Solms confessou que sua preocupação em classificar os instintos não é a mesma em apresentar os nomes das estruturas cerebrais aos psicanalistas clínicos. Os questionamentos acerca de um exemplo de “instinto de preservar a vida diante de um leão” e outros mais dados por Solms são discutidos com a plateia. Dentre outros assuntos, os participantes de variadas escolas de psicanálise apresentaram perguntas que eu consideraria constrangedoras para ele. Algumas delas, a título de exemplo, fazia mais comentar, discutir, provocar que perguntar: remetiam à ideia de que o afeto é diferente da consciência de afeto (Green); sobre o aprendizado acerca do que é necessário para sobrevivência; sobre as representações (consciente e inconsciente) e para todas elas Solms, com uma tranquilidade assustadora, apontava regiões no cérebro para embasar sua resposta.
Solms apresenta dados de que lesões em determinadas regiões (lobotomia) e efeito de drogas psicotrópicas eliminam a ocorrência de sonhos, visto que é este trajeto no cérebro que é suprimido quando se utiliza antipsicóticos. Nesse sentido, Solms demonstra a comprovação da regressão tópica da área motora para a visual que ocorre em pacientes que podem sonhar. Apresenta curiosos dados de hipnogramas de pacientes que não regridem, não sonham, mostrando a diferença da eficiência do sono pelo número de vezes que o paciente acorda com um despertar breve.
Acerca do afeto da dor e da sua diferença com a sensação somática da dor e da emoção, Solms afirma que a dor da perda psíquica é acionada na mesma região da dor física, ambas comparadas à mesma química ligada aos opióides. A regressão da dor mental para dor física nos sonhos (inusual) é explicada por um deslocamento que promove essa confusão que facilita a aceitação da dor e a torna menos penosa. Trata-se de conversão masoquista da dor objetal.
Informações como esta chamam atenção para quem não tem (ou tem muito pouca formação nas ciências neurais), mas como pensar a conversão masoquista sem a metapsicologia freudiana ou ainda entender a pré-psicanálise como uma ciência natural pouco desenvolvida? A crença ou a paixão pela potência tecnológica nos produtos da aparelhagem médica traçam um caminho que oblitera o reconhecimento de um olhar impotente diante do real do cérebro. Um olhar para o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud e mesmo os demais textos freudianos considerados de cunho neurológico, merece o alerta para a consideração de que possuem desde muito cedo o propósito de articulação de conhecimentos adquiridos em suas pesquisas neurológicas e dos resultados de suas investigações na clínica das psicopatologias, articulação esta notável em obras posteriores. A teoria do psiquismo não prescinde completamente do caminho percorrido por Freud na neurobiologia.
De toda forma, Solms assume que tem uma receita, sabe como automatizar a receita. Receita de entendimento? Receita de tratamento? Penso que um discurso que se quer vendável mostrado nesta palestra e “workshop” de neuropsicanálise não são produtos que os psicanalistas mais críticos, ainda que dialogantes com as neurociências, queiram comprar.

Elise Alves dos Santos, 16/09/2020.

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