Embora os sapatos de salto alto estejam na moda há décadas para o público feminino, sua história revela que o acessório surgiu no século 16 como peça do vestuário masculino! A ideia de ganhar alguns centímetros de altura respondia ao desejo de mostrar poder e autoridade nos campos de batalha de guerras na Ásia. O primeiro salto alto da história fazia parte de calçados militares, como explica o historiador Greg Jenner. Os cavaleiros combatentes cavalgavam sobre a cela, e se levantavam para atirar com seus arcos e flechas. Isso significava que precisavam de um salto para se manterem equilibrados sobre o estribo (BBC, 2022).
A ideia se espalhou pelo Ocidente há quase cinco séculos, quando o então xá da Pérsia, conhecido como Abbas, o Primeiro, enviou um grupo de emissários para a Europa. Os homens europeus queriam vestir calçados de salto alto para emular a força dos persas, e a rainha Elizabeth 1ª (1533-1603) começou a usá-los para parecer mais masculina (BBC, 2022).
Curioso escutar a história dessa mulher, que ao que tudo indica foi a primeira a calçar saltos altos, em determinado momento foi declarada filha ilegítima, pois o casamento de seus pais fora anulado, e portanto, a princesa então viveria sem acesso ao trono. Somente em 1543, ela seria recolocada na linha de sucessão. De outra forma, também não era esperado que Elizabeth fosse rainha da Inglaterra, pois ela tinha dois meios-irmãos: Maria e Eduardo. Ambos subiram ao trono inglês, mas morreram sem herdeiros e por isso, Elizabeth foi declarada rainha em 1558, após o falecimento da rainha Maria I.
O historiador Jenner, autor citado pela BBC News (2022), afirma que “É um pouco mais tarde, no começo do século 17, que começamos a ver saltos usados de forma generalizada, começando pelos homens, para parecerem mais masculinos e durões”. O rei Luís 14 [monarca da França de 1643 a 1715] começa a usar sapatos com saltos, porque ele era relativamente baixo, e ficou famoso por usar saltos vermelhos — que depois viriam a inspirar o design de sapatos de [Christian] Louboutin, no fim do século 20. O respaldo do rei francês significou o início da explosão do salto alto na Europa, como explica o historiador. “De repente, todo mundo estava usando salto alto na corte [francesa]” (BBC, 2022).
Foi em 1860 que o salto se torna “erótico” para as mulheres à medida em que passou a ser usado na pornografia da época. Esta tendência se fortaleceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando mulheres chamadas de “pin-ups” estamparam cartazes e revistas em poses sensuais, usando salto alto.
Marilyn Monroe e a indústria cinematográfica hollywoodiana tiveram enorme influência na promoção do salto alto como símbolo de sensualidade, glamour e beleza. Depois dos anos 1940, em pesquisa de 2017, liderada por David M. G. Lewis, da Universidade Murdoch, na Austrália, concluiu-se que o uso de saltos realmente era considerado como algo que tornava as mulheres mais atraentes.
Este impacto, no entanto, não tem nada a ver com os pés — mas, sim, com o movimento provocado pelo salto no restante do corpo feminino, em especial na curvatura lombar. “É possível perceber se uma mulher está usando salto alto sem ver seus pés, é aquela postura, a mudança na forma de andar”, diz a cientista social Heather Morgan, que cita a recente pesquisa.
“É a mudança no formato da coluna que, na verdade, é atraente.” E é justamente com esse entendimento compartilhado que as portas para o surgimento dos agravos para a saúde das mulheres se abre. Curiosamente, os homens abandonaram os saltos. Mas a gestão da beleza para as mulheres segue firme no desequilíbrio do salto em nossos dias atuais. Podemos até fazer digressões sobre as lutas enfrentadas pelas mulheres e nos perguntamos, será que ainda calçar um salto numa rotina de trabalho compensa para a busca de empoderamento?
Será que o movimento provocado pelo salto e curvatura da coluna são realmente belos?
(Imagem do arquivo pessoal da autora, no Centre Georges Pompidou, Paris, 2017).
Da rotina do salto à dor
Na contemporaneidade as mulheres trabalham e muito. Em diversos locais de trabalho, o uso de salto é solicitado para que a aparência desejável e a atratividade diante de sua imagem seja garantida. Imagine só a prescrição ou a sugestão de uso de salto alto para mulheres como condição de trabalho, seja porque a empresa defenda essa forma de apresentação, seja porque grande parte das mulheres estão aderidas “voluntariamente” e/ou inconscientemente aos saltos. Enfim, estamos aqui propondo a reflexão de fatores organizacionais e/ou psicossociais ligados ao trabalho.
As lesões por esforços repetitivos (LER) e os distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT) são por definição, consideradas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2019):
Todas as doenças, lesões e síndromes que afetam o sistema músculo esquelético, causadas, mantidas ou agravadas pelo trabalho (CID-10 G50-59, G90-99, M00-99). Em geral caracteriza-se pela ocorrência de vários sintomas inespecíficos, concomitantes ou não, que podem aparecer aos poucos, tais como dor crônica, parestesia, fadiga muscular, manifestando-se principalmente no pescoço, coluna vertebral, cintura escapular, membros superiores ou inferiores.
Embora a definição de caso para os agravos de LER/DORT inclua as afecções nos membros inferiores, o Protocolo de Complexidade Diferenciada para Dor relacionada ao trabalho, lançado pelo Ministério da Saúde em 2012 não os cita. Sabemos que tais agravos em saúde do trabalhador são subnotificados e que a realidade rotineira de agravos em membros inferiores, em especial as decorrentes do uso contínuo do salto alto além de não ser abordada neste Protocolo, mal falamos sobre isso.
Em Goiás (2022), os registros são de apenas 128 notificações nos últimos 5 anos (2017-2021), sendo 81% delas registradas no município de Goiânia. As ocupações dos trabalhadores que sofrem com LER/DORT distribuem-se nas categorias profissionais de alimentação (23,5%), manutenção (11,7%), educação (11%) e saúde (4%). Do total de notificações, 78% correspondem a trabalhadoras do sexo feminino, e 88% das LER/DORT acontecem em função do tempo de exposição ao risco ao longo dos anos. As evoluções dos casos apontam 56,5% de incapacidades temporárias e 19,6% de incapacidades permanentes parciais e 2,5 % incapacidade permanente total.
Dentre os dois sexos, as (os) trabalhadoras (es) mais afetadas (os) encontram-se na faixa etária dos 46 aos 67 anos (56,6%) e entre os 22 e 45 anos de idade, somam-se 43,3%. Embora 87% dos (as) trabalhadores (as) lesionados (as) e adoecidos (as) apresentaram limitação dos movimentos, em quase 83% dos casos não houve adoção de conduta de proteção coletiva e em 77 % não houve adoção de conduta de proteção individual. Ainda que apenas 1,5 % tenha transtorno mental associado, 95% dos casos correspondem a um diagnóstico em que a dor está presente.
As notificações de LER/DORT são todas generalizadas com o diagnóstico de exposição ocupacional a fator de risco não especificado. Pois as classificações de G50-59, G90-99, M00-99, que incluem por exemplo, aos diagnósticos de síndrome do túnel do tarso, lesão do nervo plantar, mononeuropatias dos membros inferiores, não estão disponíveis na base de dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN). Embora o filtro para diagnósticos específicos de LER/DORT relacionados aos acometimentos dos membros inferiores continue sem visibilidade, sabemos informalmente, pela experiência vivida ou relatada, que a sensação corporal buscada após um dia de trabalho com o uso dos saltos é o alívio de quando retiramos os calçados de nossos pés.
Sabendo disso, fica a pergunta: será que os saltos ficarão entre nós para sempre? As celebridades, certamente, continuam fãs desta peça do vestuário, especialmente em eventos de gala, quando eles aparecem em suas versões mais altas. No entanto, fora do contexto de festividades, na rotina do dia-a-dia mais mulheres compraram tênis a partir de 2016, pela primeira vez, mais do que sapatos de salto no Reino Unido (BBC, 2022).
A insistência na estética prevalece em discursos que consideram os saltos emblemáticos demais como símbolos de poder no imaginário, na história da cultura e da erótica para fazê-los desaparecer. Eles devem permanecer ao lado das reflexões mais críticas contra o uso abusivo da extensão forçada de altura e curvatura no corpo feminino.
O depoimento de uma mulher apaixonada pelo salto alto, tirado de um filme antigo dos arquivos da BBC, demonstra a vontade de poder submeter-se à dor para usufruir da imagem: “Acho que eu prefiro sentir muita dor e usá-los, e ficar bonita — e sofrer por isso”.
A par das escolhas individuais, da percepção e sensações psicofisiológicas pelo uso do acessório, é mister que o uso de calçados deste tipo não seja obrigatório. O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul), teve decisão confirmada pela 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em um caso no qual uma companhia operadora de telefone foi condenada a pagar R$ 120 por ano a um empregado que teve de comprar sapatos pretos para trabalhar (CONJUR, 2022).
Para além da judicialização de ações relativas a processos trabalhistas, que envolvem prejuízos financeiros aos trabalhadores(as), sugerimos a reflexão incitando a discussão no âmbito da saúde, questionando como a estética, seja pela cor, ou pelo formato anatômico vão gerar consequências que o ressarcimento financeiro não trará de volta a saúde dos membros inferiores e lombar antes dos traumas cumulativos.
Os profissionais da saúde concordam que os saltos não são saudáveis. Não há cor, nem formato, nem regra, cobrança implícita, informal ou secreta de condições de trabalho que justifique o agravo à saúde das mulheres. Com a psicanálise, a discussão pode ir no rumo da cultura que reforça a falicização de uma estética que veicula poder, e a dificuldade de sair dessa lógica de erotismo que implica encurvar o corpo para engrandecê-lo. Parece mesmo mais difícil que andar de salto alto, saltar sobre outros trilhos altos do empoderamento feminino.
Referências:
BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-60789452#:~:text=O%20salto%20alto%20surgiu%20como,eleg%C3%A2ncia%20feminina%20veio%20bem%20depois.&text=Tudo%20come%C3%A7ou%20por%20volta%20do,ou%20at%C3%A9%20mesmo%20antes%20disso. Acesso em: 26 de agosto de 2022.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Dor relacionada ao trabalho. Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteomusculares relacionados ao Trabalho. Protocolo de Complexidade Diferenciada nº 10. Saúde do Trabalhador. Brasília, 2012.
_______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública. Nota Informativa Nº 94/2019-DSASTE/SVS/MS. Orientação sobre as novas definições dos agravos e doenças relacionados ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Brasília, 2019.
_______. Ministério da Saúde. Ficha de investigação LER/DORT. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/files/saude-do-trabalhador/cerest/fichas/DRT_LERDORT-Atual-28-01-20.pdf Acesso em: 31/08/2022.
COFFITO. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução nº 424, de 08 de Julho de 2013 – (D.O.U. nº 147, Seção 1 de 01/08/2013). Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Disponível em: https://www.coffito.gov.br/nsite/?page_id=2346 . Acesso em: 29/08/2022
CONJUR. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-out-16/trabalhador-obrigado-usar-sapato-especifico-ressarcido Acesso em: 29/08/2022.
GOIÁS. Dados de LER/DORT (2017-2021) extraídos do SINAN. Sistema Nacional de Notificação de Agravos em Saúde do Trabalhador. Disponibilizado pelo técnico em segurança do trabalho Albertino Dias Lira, do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador em 22/09/2022.