Ensaios

Experiências de acolhimento e solidariedade no trabalho: um exemplo de imigração do Brasil para França – Dra. Elise Alves conversa com a chef Alessandra Montagne no restaurante “Nosso”.

Quando alguém busca imigração, algumas palavras e expressões chaves vêem em seu bojo: trabalho, melhores condições de existência, ser cidadão. A chef franco-brasileira Alessandra Montagne, nascida no dia internacional da mulher, na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro e criada no interior de Minas Gerais, mudou-se para Paris, para provar outra vida possível de amar e trabalhar, os pilares para uma saúde mental razoavelmente equilibrada, segundo Freud. Em março de 2023 pude me reencontrar com Alessandra, durante um serviço de alta gastronomia francesa com entrada, prato principal e sobremesa em seu restaurante Nosso, no 13º distrito de Paris. Esse bate-papo cheio de revelações sobre sua trajetória de trabalho nos dá exemplos de como sua saúde mental pôde ser recuperada na experiência de imigração. Quando chegou em Paris, aos 22 anos, a jovem carregava marcas da violência, vítima de abandono quando ainda era um bebê, de bullying no internato onde estudou e ainda vítima das agressões do primeiro marido no Brasil. Com uma história de tantas experiências traumáticas, ela não poderia imaginar que se tornaria uma chef de cozinha reconhecida por estrelas da gastronomia francesa e por tantas personalidades, como o presidente da França, Emmanuel Macron. Durante seu processo de ascensão, Alessandra direcionou suas energias ao trabalho e contou como era dividir a vida na cozinha e de mãe, que cuidava do filho no quarto que alugava ao lado do restaurante onde trabalhava. Ainda que certificada por diplomas franceses, de atitude profissional em cozinha e pâtisserie (WOWWOMAN, 2023), à medida que crescia enquanto profissional, sentia-se por vezes acometida da síndrome do impostor, muito estressada pela expectativa de reconhecimento (BIAL, 2023). Dentre as várias situações que a colocaram à prova de suas capacidades, antes ou durante os apertos da vida, ela me contou que teve um acometimento em seu corpo – perda auditiva parcial – que ela atribui às intensas vivências de angústia que transbordaram em determinado momento. Material que caberia uma notificação de transtornos neuróticos, do estresse e somatoformes relacionados ao trabalho. Entretanto, do sofrimento, ela se recriou com o trabalho “porque sofrer faz parte da vida e a maneira como você gera seu sofrimento define a pessoa que você é”, conta Alessandra após cuidar de suas feridas emocionais. Alessandra buscou psicoterapia e pôde aprender pelos novos caminhos que trilhou durante os percalços da pandemia. O processo de escrita de sua história, facilitou com que ela pudesse “fazer as pazes” com os conflitos pelos quais passou. A chef acaba de lançar o cativante livro: “Minha cozinha de coração”, lançado em fevereiro de 2023. Nele ela relata, com simplicidade e beleza a realidade de condições de vida no interior de Minas Gerais onde foi criada pelos avós e depois em Paris, toda uma trajetória de parcerias generosas de profissionais que contribuíram em sua formação de trabalho. Dentre vários relatos presentes nas páginas iniciais de seu livro, consta a do grande chef Alain Ducasse, francês de renome internacional, que a considera uma cozinheira notável e bem mais que isso: “uma mulher que mostra o caminho. Aquele de uma cozinha de amor. De força de vida”. Gradiva, aquela que anda, ou aquela que brilha ao caminhar (FREUD, 1907/1996; FREUD, 1907/2015). Dentre tantas lições, observamos no contato com Alessandra, uma trabalhadora consciente dos obstáculos que teve sendo mulher, pobre e negra num continente caucasiano. Ao longo de sua trajetória, coletamos atitudes que fizeram valer sua conduta de inclusão da diversidade nos empreendimentos realizados na área da saúde nutricional no período da pandemia. A chef ingressou numa escola de naturopatia que passou a ocupar em sua mentalidade o uso dos recursos sem desperdício (RFI, 2022). A chef pode ser vista cozinhando para refugiados ou em eventos populares – como a tradicional festa anual do centenário jornal L’Humanité – ou debates na Unesco sobre alimentação sustentável e de respeito ao meio ambiente (EICHENBERG, 2019). O tratamento dispensado aos colegas de trabalho é de cumplicidade e amor. Gestos simples ao cumprimentar as pessoas, resolver pequenos problemas que surgem, inclusive sua presença acolhedora em momentos de entrevista para emprego no restaurante. Alessandra me convidou para participar deste momento, junto de uma jovem parisiense, na ocasião perguntei por que aqui com Alessandra? Em outras palavras, a jovem muito segura respondeu, em outras palavras: “porque é ela”. Esta tarde compartilhada no Nosso, com Alessandra, faz perceber com quem tem o privilégio de conhecê-la, o modo como ela entende seu trabalho que é “fazer brilhar a luz de todos na mesma intensidade e que suas luzes se harmonizem entre si” (GOMES, 2023, p. 171). O nome do restaurante reflete seu percurso e reconhecimento de um trabalho coletivo. Ela compara o pessoal com um verdadeiro tesouro, de joias mais ou menos buriladas. Dentre os momentos marcantes em sua carreira, ela cita quando cozinhou para as crianças do Morro Dois Irmãos, comunidade onde nasceu no Vidigal. O reconhecimento das desigualdades sociais, o estranhamento diante do problema da fome no Brasil, fazem Alessandra ressignificar seu trabalho, que é o de “nutrir de amor” tanto os corpos como os corações. Alessandra observa: “hoje em dia, na França, a gente joga uma quantidade surreal de comida fora e financeiramente não podemos mais continuar vivendo assim, enquanto muitos morrem de fome. Por respeito a essas pessoas não podemos jogar comida fora”. E assim, vemos que a solidariedade só funciona mesmo quando se mostra na realidade que vai tomando espaço. No podcast “Exploradoras, mulheres pelo mundo” (2023), vemos que a chef vence o machismo e o sexismo para conquistar um espaço até então sempre ocupado por homens. A discriminação existe, e ela também sofreu com isso, além de ser mulher negra e estrangeira. Em conversa com Adriana Mabilia (2023) Alessandra compartilha uma experiência de como se portou com uma cliente – que nem sempre tem razão. A cliente havia feito uma reserva para 12 horas e só chegou às 12:40 h. A cliente foi contactada três vezes por chamadas telefônicas, mas não atendeu. A sua mesa foi cedida a um cliente passante, que não havia feito reserva. A funcionária Martina respondeu educadamente que como não obteve resposta nas tentativas de contato, a mesa havia sido disponibilizada. A cliente questionou como essa conduta era possível, dizendo rispidamente que era médica e começou a tratar mal Martina. Alessandra veio ao encontro da situação e disse que “estudos de medicina não dispensam a senhora de ser educada”. A cliente saiu, mas voltou três dias depois, como se nada tivesse acontecido. O carinho e afeto com que Alessandra trabalha, ainda que tenha sido firme em sua colocação, com o clamor pelo respeito no trato com as pessoas. A razão que a cliente parece ter encontrado é a de que seu restaurante é um lugar que as pessoas se respeitam e querem voltar, pois tem princípios de cuidado que sustentam cada ação cotidiana. O marketing de ações de responsabilidade social quando feitos apenas com este propósito sem a contrapartida necessária, é só marketing e não sustenta a imagem institucional analisada com mais critério (MACÊDO & cols., 2008). A chef que trabalha seriamente contra o desperdício, nos conta que para se fazer uma baguete são necessários mais de 150 litros de água. Sua criatividade para usar os alimentos metaforiza com as ações que nós dispomos fazer com os ingredientes que a vida nos traz. O modo como a chef é vista pelos seus pares e jovens ingressantes no mercado de trabalho é algo da ordem do real. Para usar uma expressão lacaniana, prata da casa francesa de psicanálise, ficar só na imaginarização (BACELAR & COUTINHO, 2022) aprisiona os sujeitos a um discurso capitalista de venda da própria imagem. As conquistas exitosas de Alessandra simbolizam sua vida real, não vem de um conceito criado para ser vendido. Ser chefe – em qualquer área de atuação – sem ser autoritária é uma condição para fazer face ao mal-estar das desigualdades sociais. É uma iniciativa de tratar dos sintomas da clínica do trabalho contemporâneo. A barreira da língua, da cultura, da distância da família, são elementos que nos fazem pensar nas condições de vida e claro, trabalho, enquanto centralidade da vida, no Brasil. Desde 2017, quando morei em Paris, acompanho o trabalho de Alessandra em seu primeiro restaurante Tempero. O trabalho desta chef solaire (ou ensolarada, calorosa) como foi chamada em seu livro, vai para além da oferta de sua comida, com ela podemos absorver ensinamentos, degustar de uma boa conversa que inspira novas práticas de gestão, de produção de alimentos e seus usos. Suas contribuições vão muito além das receitas que ela compartilha no livro. Ela nos deixa como aprendizado que a paixão pelo seu métier foi uma “boia de salvação” (GOMES, 2023, p. 212), e que faz sentido buscar essa paixão, onde quer que ela possa se realizar. Ganhos para a França, país que deu tantas oportunidades à Alessandra, que também tanto se beneficiou com a imigração. Do lado de cá do oceano, terminamos este relato com uma questão: como fazer para que o Brasil seja um lugar bom de se buscar as paixões de bem-viver o trabalho? Seguimos temperando nossas reflexões sobre o fenômeno das migrações brasileiras para outros países com uma frase da entrevistada “é preciso assumir seu passado para que seu presente seja mais doce”. As elaborações que a escrita e a psicoterapia assumiram na história de trabalho Alessandra me fazem lembrar a epígrafe de Schopenhauer no capítulo “poder e desenvolvimento humano” de Zaleznik e deVries (1981, p. 51), com a qual encerro este texto: As pessoas dotadas de grandes e esplêndidas qualidades não sentem muita dificuldade em admitir seus erros e fraquezas. Tais pessoas os encaram como algo pelo qual pagaram, ou até chegam ao ponto de pensar que, longe de se sentirem envergonhadas por tais fraquezas, estão concedendo-lhes a honra de possuí-las.

Referências:

BACELAR, Joyce; COUTINHO, Denise. A noção lacaniana de imaginarização: a clínica psicanalítica e seus
desdobramentos no social. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. 25 (01) • Mar 2022
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2022v25n1p83.5
BIAL, Pedro. Conversa com Bial / Alessandra Montagne / Programa Completo. YouTube. 05 de maio de 2023. Disponível em: https://youtu.be/idZ5kZRZ1g8 Acesso em: 08/05/2023.
EICHENBERG, Fernando. A incrível história da chef brasileira Alessandra Montagne, de Poté (MG) para as
cozinhas de Paris, 2019. Disponível em: https://fernandoeichenberg.com/a-incrive-historia-da-chef-brasileiraalessandra-montagne-de-pote-mg-para-as-cozinhas-de-paris. Acesso em: 09/05/2023.
EXPLORADORAS, MULHERES PELO MUNDO – Alessandra Montagne. Entrevistadora: Adriana Mabilia.
Produção Gabriel Saraiva. 08 de maio de 2023. Podcast. Disponível em:
https://cultura.uol.com.br/radio/programas/exploradoras/2023/05/08/3_exploradoras-mulheres-pelo-mundoalessandra-montagne.html. Acesso em: 09/05/2023
FREUD, Sigmund. (1907 [1906]/1996) Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de. Janeiro: Imago, 1996.
_________. (1907/2015). O delírio e os sonhos na Gradiva. In: . Obras completas, volume 8: O delírio e os sonhos na Gradiva,. Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906 -1909). São Paulo: Companhia da Letras. Tradução: Paulo César de Souza.
GOMES, Alessandra Montagne. De rio à paris: ma cuisine de couer. Textes Laurène Petit. Photographes Maki
Manoukian. Flammarion, Paris, 2023. ISBN: 978-2-0804-1271-3. nº d’édition: 554122.
MACÊDO, Kátia Barbosa; OLIVEIRA, Alberto; FARIAS, Keila Mara de Oliveira; SANTOS, Elise Alves; SIQUEIRA,
Ana Tereza Elias; SOUZA, Jamaile. R. Os programas de gestão ambiental a partir da percepção dos trabalhadores: um estudo em organizações goianas. In: Kátia Barbosa Macêdo. (Org.). Gestão Ambiental e Organizações: Interfaces Possíveis. 1ed. Goiânia: Editora da UCG, 2008, v. , p. 31-100.
RFI. Rádio France Internacional. “Tudo se reaproveita”, diz chef brasileira Alessandra Montagne que está
conquistando os franceses. Publicado em 10/02/2022. Acesso em: 08/05/2023.
ZALESNIK, Abraham; deVRIES, Manfred F. R. Kets. Poder e desenvolvimento humano. In:
. O poder e a
mente empresarial. Biblioteca Pioneira de Administração e Negócios. Tradução: Regina Chiquetto e Oswaldo Chiquetto. Livraria Pioneira Editora. São Paulo, 1981, pp. 51-69.
WOWWOMAN. Chef, restaurant owner, survivor, Paris, France. Extraordinary Women and their stories.
Disponível em: https://www.wowwomaan.com/chef-restaurant-owner-survivor-paris-france Acesso em: 09/05/2023.

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