Ensaios

Um anjo que caiu do céu

Quem me dera poder fazer uma poesia para falar da vida de alguém. O título remete a uma expressão amorosa que usamos quando uma pessoa chega na vida de outras para torná-la bem cuidada, tratada com carinho, atenção. Enfim, é uma dádiva da vida ser agraciado com um anjo que cai dos céus para estar conosco. Seu nome era Ângelo, mas seu apelido, era “anjinho”.

O Anjinho que vivia a melhor fase de sua vida, segundo seus amigos e familiares, e até minha percepção dos breves encontros que nos restaram de décadas de convivência enquanto vizinhos de moradia, nas conversas rápidas de elevador, mas nada superficiais, porque Anjinho, generoso que era, “dava o que tinha” no contato amoroso com todos com quem encontrava. 

Mas diante da morte, irrepresentável e sem poesia que dê conta de aplacar o sofrimento, nos falta demais, faltam tantas palavras que me sinto convocada a trazer um monte delas, tentar colocar – não digo sentido, mas algum consolo, vontade de fazer justiça à sua vida. Enxurrada de “moções pulsionais”, eu escreveria para Freud se tivesse talento suficiente, aos modos de Lou-Andreas Salomé, e diria que essa expressão que especifica um estímulo interno determinado, tem na morte do semelhante a fonte mais produtiva, atualiza o sentir, o pensar, a pulsão em ato, essa coisa endógena que é a dor, a novela que se presta a mostrar descaradamente e detidamente sobre a dor é tão impactante que chega dói.

Uma psicóloga do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do ABC Paulista1 me envia a notícia de que encontraram o corpo dele. Como queríamos não ter tido essa notícia: da agonia do desaparecimento, da esperança de sobrevida mesclada com o desespero da falta de respostas.

No mesmo dia, pela manhã, eu contava para alguns amigos sobre o ocorrido, e eu mesma havia dito (consolo para mim mesma, frases reiteradamente repetidas que tentam trazer algum conforto ou compensação pela morte): “Morreu fazendo o que gostava”. Que bom que fazer o que gostava foi possível. 

É isso que pudemos ver em seu velório. A maior sala do cemitério Jardim das Palmeiras repleta de coroa de flores – eu contei 30, porque nessas horas acho que queria objetivar quantas homenagens estavam em curso, e quantas serão insuficientes para dizer o quanto sua vida era preciosa. 

Anjinho se encontrou na profissão que o permitia voar. A mágica que nos envolve a todos desde antes de Santos Dumont, nosso desejo de liberdade, de realizar a loucura de ter braços voadores que nos permitem movimentar nos espaços onde nossas pernas jamais conseguiriam ir. Querer falar de um jeito bonito, não me faz ser menos envolvida com a técnica. Ele deveria ter tido a chance de continuar alçando voos.

Sei que está muito cedo para os enlutados mais próximos, mas não é preciso ler A negação da Morte de Ernest Becker para dizer que o discurso de resignação aparece muito rapidamente para os crentes de que um ser maior assim o quis. Tentar tampar o buraco enorme que a falta de Anjinho vai fazer é muito compreensível e socialmente aceito. E todas as manifestações de fé devem ser aceitas, incluindo a fé na ciência. 

E é por isso – meus amigos do Edifício Itaipu, com tive a grata experiência de partilhar toda adolescência – que convido ao trabalho do luto, que mais do que percorrer as fases estabelecidas por Elizabeth Klüber-Ross (algumas etapas acontecem essencialmente em ciclos), deve sustentar além da aceitação mas (também) a negação da morte, pois os riscos “inerentes” ao trabalho de voar precisam ser melhor observados. 

Finalizo, aquilo que pretendia ser uma condolência, como também uma incitação à fase de revolta, não somente ao que o choro, e tantas outras modificações orgânicas – inclusive o retorno ao inorgânico – podem causar. A ideia de re-volta, de voltar a dar a volta, percorrer novamente o caminho do estranhamento (o que aconteceu realmente?, o que poderia de fato ter sido evitado?, por que?). A investigação de um acidente de trabalho fatal passa por uma demanda. 

Não! Não, está tudo bem. Precisamos reconhecer coletivamente que embora o tempo possa aplacar o extremo sofrimento, ele deixa marcas indeléveis, algumas tão inconscientes e poderosas que jamais poderemos imaginar. Deixemos que nossas moções pulsionais nos mobilizem para buscar outros caminhos para a segurança dos trabalhadores perdidos nos ares, nas matas densas, no escuro das noites sem estrelas.

O Anjinho que caiu dos céus não pode mais estar conosco como antes. Que sua presença em memória seja resgatada. Nesse “Abril Verde”2, a notificação deste acidente de trabalho fatal, desta tragédia, deve ser, sem dúvida, investigada. Fica para nossa herança acompanhar as ações reclamadas para garantir a continuidade da vida de trabalhadores do céu – que não deveriam literalmente ter de dar suas vidas à profissão – eles, precisam poder voltar à terra. 

  1.  Eliane Pintor já nos agraciou com sua presença no Seminário sobre Saúde Mental no Trabalho, que pude organizar em nome do CEREST Goiás em 2023, com sua vinda patrocinada pelo Ministério Público do Trabalho em Goiás.
  2.  Abril Verde é uma campanha de conscientização realizada durante todo o mês de abril e que busca chamar a atenção para a importância da prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.

Elise Alves dos Santos,

Goiânia, 02 de abril de 2024.

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