Eles estavam todos vestidos em uniformes de brutalidade, eh!
Quantos rios nós temos que atravessar?
Antes de podermos falar com o chefe?
(Burn’ and Lootin’, de Bob Marley & The Wailers)
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) publicou em sua rede social, no dia 20 de maio
de 2024, um carrossel com imagens informativas sobre a diferença entre as síndromes
“Burnout e Burnon”. A diferença essencial seria que,
no Burnout, o esgotamento profissional é causado por estresse crônico no trabalho em
contextos de baixa realização profissional, enquanto que no Burnon seria um acúmulo
progressivo de estresse em “pessoas perfeccionistas e com disponibilidade excessiva para o
trabalho”, em contextos de alta realização profissional.
Curioso pensar que a demanda no mercado de trabalho por desempenhos
extraordinários alude a um “defeito” ou a uma “característica” de perfeccionismo ou
disponibilidade excessiva que podemos, no discurso, reconhecê-las como negativas
nos processos seletivos para preenchimento de vagas. Mas tais características são
justamente valorizadas pelos candidatos pois eles sabem que, no fundo, é isso que a empresa
quer – dedicação máxima, qualidade ofertada na medida de um sintoma em que a perfeição
pode até mesmo se transformar num extremo de sufixo “ismo”: “meu problema é o
perfeccionismo”. Assim, produzimos subjetividades excessivamente disponíveis que
entendem que essas mesmas características precisam estar presentes e serem
desenvolvidas. Ainda que sejam socialmente reconhecidas como problemáticas, os trabalhadores
parecem entender o discurso hipócrita que defende que as descrições patológicas seriam
antes, uma vantagem competitiva.
A expectativa presumida de que a divulgação dos impactos causados por tais
síndromes pudessem servir de ação de educação em saúde do trabalhador, que pretende a
prevenção e o enfrentamento do esgotamento, pode até ser louvável. No entanto, é preciso
inverter a rota de direcionamento de atribuição da causalidade do esgotamento
profissional. O que precisa de fato ser prevenido e enfrentado são as causas primeiras do
esgotamento, que não estão, na maior parte das vezes, nas individualidades dos
trabalhadores.
Mais do que “promover um ambiente de trabalho equilibrado e oferecer suporte aos
trabalhadores afetados pela rotina laboral”, é preciso questionar o que torna o contexto de
trabalho tão desequilibrado e desigual. A notícia de que o Ministério Público do Trabalho do
Rio Grande do Sul recebeu 60 denúncias de comparecimento obrigatório ao trabalho durante a
crise após as enchentes que atingiram o estado ilustra bem o conflito de interesses na luta
de classes sociais. Assunto que parece querer ser afogado pelos que querem sobreviver à
custa das desgraças alheias. O suporte aos trabalhadores precisa acontecer no âmbito
coletivo, compreendendo que estamos produzindo condições de risco para o adoecimento.
Assim, não é o caso das empresas/instituições devolverem o problema aos
trabalhadores e afirmar que a prioridade é o “autocuidado”, como se cada um cuidando do
próprio umbigo fosse curar uma ferida macrossocial. Estabelecer “limites saudáveis”
envolve a concepção de saúde defendida por nossa sociedade e envolve sobretudo a
condição que cada trabalhador tem de usufruir de sua própria liberdade de expressão, sem
medo de receber retaliações ou de inclusive ser assediado até o ponto de ser demitido ou
de ser forçado a pedir demissão. É óbvio que buscar orientação de profissionais de saúde é
necessário, mas não associar o nexo causal do adoecimento com o trabalho e deixar de priorizar a prevenção, acaba por “tapar o sol com a peneira” na ideologia do self made man.
O acúmulo de estresse crônico no burnout, por exemplo, “que não foi gerenciado com sucesso”, com base na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), atribui
imediatamente o problema a uma questão de gerenciamento… Dessa forma ao reduzir a situação a uma questão de como administrar o problema, se apaga a discussão política, e a
análise séria que deveríamos estar ocupados nas políticas de saúde do trabalhador e da
trabalhadora.
Os 130 possíveis sintomas diferentes do burnout, por exemplo, não podem ser
considerados fundamentalmente causas da síndrome, as descrições nos manuais e
questionários que existem sobre o tema são mais efeitos de efeitos. Com base em Lima
(2021), chamaria esses sintomas de desdobramentos que acontecem no corpo-psiquismo do(a)
trabalhador(a), descritos fenomenologicamente como: exaustão física e mental,
despersonalização, negativismo, cinismo, problemas cardiovasculares, distúrbios
do sono, depressão, ansiedade, redução da eficácia profissional…
Junto com Assoun (2018), concordamos que não é que sejamos misoneístas no
sentido de recusar o discurso novo, mas, fundamentalmente, a questão do burnout e do
mais novo termo burnon não é nova, as nomenclaturas são uma falsa novidade. Antes dos
alemães cunharem esse termo, o médico e psicanalista francês Christophe Dejours (2004) já
estava investigando a psicodinâmica do trabalho para além da psicopatologia, como os trabalhadores continuam produzindo apesar dos péssimos contextos de trabalho.
Estamos tapando o mal-estar na cultura com esses gadgets sociais. O gadget “Burnout” é
um discurso social atual que comporta uma metáfora interessante, quer dizer, a destruição
do sujeito pelo fogo. No entanto, ele é analisado apenas fenomenologicamente, seja como
resultado do esgotamento e da incapacidade instalada do burnout, seja pela manutenção da
capacidade de trabalho concomitante com os sintomas depressivos.
Para considerar o esgotamento pela perspectiva da psicanálise é preciso como
defende o psicanalista Christian Dunker (2015) propor a diagnóstica (sim, no feminino)
do sujeito com a transversalidade diagnóstica entre disciplinas clínicas (médica,
psicanalítica, psiquiátrica, psicológica); tanto a flutuação discursiva dos efeitos diagnósticos
(jurídico, econômico, moral) como sua incidência no real das diferenças sociais (gênero,
classe, sexualidade). Assim, é preciso reconstruir a forma de vida a partir de um escopo
ético de uma racionalidade diagnóstica de uma maneira ampliada. O esgotamento de uma
mulher negra e pobre, esgotada pelo trabalho é diferente do esgotamento de um homem
branco e de classe social mais privilegiada. Os laços entre trabalho, linguagem e desejo
precisam ser refeitos para se pensar a patologia que se exprime no sintoma, no mal-estar e
no sofrimento – como uma patologia social.
A função essencial na investigação do diagnóstico é importante para fins de pesquisa
e planejamentos, mas o essencial no acompanhamento do sujeito é a sua narrativa, como
ele se implica na construção de sua própria história, juntamente com a análise do contexto
de trabalho em que ele está inserido. E as vozes que dizem que a saúde do trabalhador
importa advém de lugares muito diferentes, de cuidado ou de exploração. Parafraseando Caetano Veloso,
eu diria, “é preciso estar atento e forte, não temos que temer a morte” especialmente, de
um modelo incendiário de produzir a vida.
Referências:
ASSOUN, Paul-Laurent. A Antropologia Psicanalítica: uma chave para pensar o
contemporâneo. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 21(3), 431-441, set. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p431.2. Entrevistado por Cristina
Lindenmeyer. Transcrição e tradução: Elise Alves dos Santos e Vivian Ligeiro, 2018.
DEJOURS, Christophe. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Selma Lancman & Laerte I. Sznelman (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Brasília: Paralelo 15, 2004. 346 pp.
DUNKER, C.I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre
muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
LIMA, Estevam Vaz de. Burnout: a doença que não existe. 1ª ed. Curitiba: Appris,
2021, 159 p.
Goiânia, 22 de maio de 2024.
Dra. Elise Alves dos Santos.
*Texto aceito para publicação no Boletim Informativo de Saúde do Trabalhador do Estado de Goiás em agosto de 2024.