Em 2022 escrevi sobre a importância do nome próprio do trabalhador1. Texto inspirado na conversa que tive com o professor Dr. Roberto Heloani no encontro que organizei em 2014 sobre assédio moral no trabalho na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, lembro dele iniciar sua palestra criticando o uso do termo “colaborador”. Hoje vou entrar um pouco mais na questão dos nomes usados como vocativo e tratamento do trabalhador.
É preciso prestar atenção nas palavras e técnicas que escolhemos, pois tanto umas quanto as outras “constituem um meio poderoso de transmitir valores, significados e atitudes”. O nome dado ao trabalhador precisa passar constantemente pelo escrutínio da reflexão e do pensamento crítico (Diniz, 2004). A proposta de escutar o que dizemos passa pelo reconhecimento dos pressupostos patriarcais e discriminatórios e o quanto eles podem ser usados para perpetuar papeis e estereótipos desvantajosos para o reconhecimento de quaisquer trabalhadores.
Seguindo a análise em um nível mais individual, reflitamos: na sociedade contemporânea é possível mudar de sexo, mudar de nome, acrescentar sobrenomes ou ainda manter os mesmos nomes mesmo que depois que seus corpos ou estados civis tenham se modificado. Nem sempre os documentos de identificação acompanham a materialização da realização do desejo de ter nova identidade. Por isso, a pergunta: “como você gosta de ser chamado ou de ser chamada?” é bem-vinda nas conversas de socialização dentro dos ambientes de trabalho.
Doutor e doutora: um exemplo para questionar o dizer de um título próprio
No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa o primeiro significado do verbete “doutor” é o seguinte: “1. Aquele que completou o doutorado” (Ferreira, 2010, p. 742). A par da consideração contemporânea da cultura brasileira, pactuada numa das maiores referências da língua portuguesa que é nosso Dicionário Aurélio, a defesa para que os advogados sejam chamados de doutores está num decreto imperial de 1º de agosto de 1825, importado e exarado pelo Chefe de Governo de Dom Pedro I, que deu origem à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que dispõe sobre o título (grau) de doutor para o Advogado. A questão é, se Dom Pedro “falou” no século XIX, “água parou” até o século XXI?
Hoje temos “doutores de verdade”, como muitos querem defender, ou seja, aqueles que fizeram doutorado em várias categorias profissionais. Negando a pertinência cultural referendada pelo Ministério da Educação, de certificar doutores ou ainda aqueles assim nomeados pela tradição, na contramão da valorização dos títulos próprios conquistados pelas(os) trabalhadoras(es), o Decreto N° 9.758, publicado em 11 de abril de 2019 proíbe, na Administração Pública Federal, o uso de formas de tratamento bastante conhecidas dos manuais de Redação Oficial. O ato normativo determina que se utilize exclusivamente a forma “senhor”/”senhora” nas comunicações orais ou escritas entre agentes públicos federais, como forma de modernizar e desburocratizar o uso de pronomes de tratamento. A mesma pergunta feita à pertinência de um conteúdo legal de outrora é feita agora, por um viés crítico, pela advogada Dra. Jael Sânera Sigales-Gonçalves2.
Jael atenta-se para o uso de pronome justamente porque, geralmente, essas palavras substituem nomes próprios ou substantivos comuns, que podem ser associados às pessoas do discurso – 1ª (eu, quem fala), 2ª (tu, aquele com quem se fala) e 3ª (ele, do que/qual se fala). Além disso, o decreto proíbe formas como “Vossa Excelência”, “respeitável” e “doutor”, fazendo pensar que bandeiras como “Doutor é quem tem doutorado” teriam entrado para o rol de prioridades legislativas da União Federal, mas a intenção não parece acontecer por aí. O blog de Linguística da Unicamp, assinado pela Dra. Jael, provoca a reflexão:
Parece simples olhar para essas regras de emprego dos pronomes de tratamento e empregá-los “adequadamente” nas diferentes situações de comunicação. Porém, os Manuais não explicam, por exemplo, por que o feirante chama o cliente de “doutor”, e não o contrário; por que o porteiro é “Seu José”, não “Senhor José”; por que toda patroa de empregada doméstica é “Dona Fulana”, não importa a idade. Também não explicam como e por que a subversão das regras de uso das formas de tratamento e o jogo com o “status social” produzida por cada pronome produzem o riso:
Fonte: Sigales-Gonçalves, 2024.
Essas situações jocosas nos dão indícios de que há algo do funcionamento da fala que escapa às tentativas de sua regulação. Por isso, é preciso ir além dos Manuais para compreender o que está em jogo na divisão entre quem é “senhor” e quem é “excelentíssimo”, que poderia ser chamado de doutor e não é. Geralmente, quando se fala em “políticas linguísticas”, se fala de escolhas conscientes sobre a língua na vida social que vão resultar em práticas de “planejamento linguístico”, ou seja, ações concretas em que o Estado coloca em prática suas escolhas sobre a comunicação. Manuais de Redação Oficial e normas jurídicas que buscam regular o uso da língua – como o Decreto n.° 9.094/2017 e o Decreto n.° 6.583/2008 – são exemplos desse planejamento linguístico.
No horizonte da discussão do uso do título de doutores por força da tradição secular para advogados ou médicos, o que merece mais atenção é que há décadas diversos profissionais têm se habilitado legalmente para o reconhecimento formal de seus doutoramentos, seja em planos de carreira ou fora deles. As reflexões devem ir além do legalismo e tradicionalismo e é preciso repensar o que fazer diante de certas “psicopatologias da vida cotidiana”, para tomar emprestado o título de uma obra freudiana.
Se num mesmo ambiente há um advogado experiente, seja na administração pública ou na iniciativa privada, o jovem que tem os mesmos títulos deve ser tratado tal qual o colega, pois a formalidade e padronização são dois atributos presentes nos princípios constitucionais brasileiros de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. No entanto, nem sempre é assim…
No Brasil, o doutorado é cursado em pelo menos quatro anos, isso após fazer um mestrado que dura pelo menos dois anos. Então, quando você passa a saber que alguém tem um doutorado, saiba que este brasileiro estudou em média o dobro de tempo que qualquer outro graduado em curso superior. O empenho nos estudos é característica individual, incentivada (ou não) pelas políticas educacionais do país, estado ou região.
Logo, seguindo esta via de raciocínio, não deveríamos mais nos referir aos médicos ou advogados como doutores? A resposta deve vir como exercício de um certo posicionamento ético. Há graduados mais jovens que entendem que não deveriam ser assim chamados, pois não fizeram o curso específico que lhe concederia este título. Por outro lado, ainda restam muitos que se comprazem deste modo de serem chamados, pois alguns “subordinados”3 ainda lhe conferem um lugar de destaque, de poder, fálico em última medida. Nada impede que, informalmente, com o devido respeito e consentimento, possamos dar apelidos ou nos referir aos colegas por doutores ainda que não possuam os títulos específicos, conferidos pelo Ministério da Educação.
No entanto, em momentos formais de apresentação do profissional em seu ambiente de trabalho, é mister que a apresentação curricular seja feita seguindo os princípios éticos amplamente divulgados nos variados Códigos de Ética que proíbem as categorias profissionais a divulgar e declarar possuir títulos acadêmicos que não possuam.
Antes de chamar qualquer graduado de doutor, pergunte-se, e o doutorado? Reconhecendo ou não o conteúdo abordado neste texto, atente-se ao direcionamento de sua expressão ao colega de trabalho que o responsabiliza daquilo que fala ou deixa de falar. Certifique-se se a sua liberdade está interferindo na imagem do outro, seja porque o diminui ou o menospreza. Esses cuidados são medidas de prevenção ao assédio moral no trabalho, pois o respeito e reconhecimento da trajetória de cada trabalhador cabe em qualquer ambiente de trabalho.
Trazer honra e homenagem para um colega que não possui o título e não mencionar outro que o possua é situação que não passa incólume a uma análise dos princípios de reconhecimento na carreira investida pelo(a) trabalhador(a). Seja no caso de você estar tendo dificuldades em se lembrar do nome de colegas de trabalho e se não se trata de amnésia, ou optar por termos que apaguem a sua singularidade, atente-se para o modo como se refere ou não se refere ao seu colega de trabalho.
Lembrando que após o vocativo ou aposto de doutor e doutora vem um nome próprio singular que identifica o(a) trabalhador(a). É ele (ela), quem viveu a longa e muitas vezes difícil experiência de trabalho de anos a fio em pós-graduações, é ele (ela) quem deve ser perguntado(a), antes de tudo como prefere ser chamado(a) por aquele que entra em seu ambiente de relacionamento, seja para pronunciá-lo na forma escrita ou falada. Esse é o pronome de tratamento adequado, o respeito à singularidade do percurso e identidade de cada um.
- Disponível em: www.elise.psc.br/2022/02/07/a-importancia-do-nome-proprio-do-trabalhador-uma-politica-linguistica-de-respeito/
- É Doutora e Mestre em Letras pela Universidade Católica de Pelotas, com estágio doutoral na Universidade de York, Reino Unido. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas e atua como professora em nível de graduação e pós-graduação stricto sensu na mesma instituição. Tem experiência de pesquisa, ensino e extensão na interface entre Linguística e Direito, especialmente em Direitos Humanos, Direito Linguístico e Políticas Linguísticas para a população migrante no Brasil. Lidera o Grupo de Pesquisa Língua, Direito, Estado e Sociedade – GELIDES/CNPq. Integra o ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes em São Paulo, vinculado à Faculdade de Direito da USP, onde atua como pesquisadora e advogada voluntária.
- Consultar Zaleznik e De Vries (1981).
Referências:
DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.
HELOANI, José Roberto Montes. Encontro sobre Assédio Moral na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Auditório da TBC Cultura. Comunicação verbal. 2014.
BRASIL. Decreto Nº 9.758 de 11 de Abril de 2019. Casa Civil da Presidência da República. Dispõe sobre a forma de tratamento e de endereçamento nas comunicações com agentes públicos da administração pública federal. Diário Oficial da União de 11/04/2019, p. 5 Edição Extra.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Doutor. In: ____. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5 ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 742.
SIGALES-GONÇALVES, Jael Sânera. Doutor é quem tem doutorado: o decreto presidencial sobre as formas de tratamento – Parte I. #Linguística – Blogs de Ciência da Unicamp, 20 dez. 2019d. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/linguistica. Acesso em: 08/08/2024.
VERDI, M.; BUCHELE, F.; TOGNOLI, H. A educação em saúde no contexto da atenção básica de saúde. Educação em saúde [Recurso Eletrônico].Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010, p. 25-41./2019/12/20/doutor-e-quem-tem-doutorado-o-decreto-presidencial-sobre-as-formas-de-tratam ento-i. Acesso em: 28 de janeiro de 2022.
ZALEZNIK, Abraham; De VRIES, F. R. Kets. Subordinação. In: _____. O poder e a Mente empresarial. São Paulo: Pioneira, 1981, p. 119-138.
Goiânia, 08 de agosto de 2024.
Dra. Elise Alves dos Santos.