Ensaios

Roda de capoeira

Para “sair jogo” na roda de capoeira é preciso tomar uma posição diferente, é preciso sair da repetição da ginga, é preciso ousar, fazer acontecer, surpreender aquele sujeito que está jogando com você, propondo novos movimentos para ver o que surge na brincadeira. É preciso construir um roteiro improvisado na cumplicidade com o colega.

Na roda se instaura uma confraternização de um lugar de contenção, de ligação, de transformação, de transferência, de resistência e de desistência, sobretudo, de luta do ser-conjunto. Para sustentar a possibilidade de recriar a capoeira de mestre Bimba, no chão goiano por ele escolhido para viver, se oferecem referências e apelidos para a aderência de uma grande diversidade de classes sociais a uma mesma cultura. Com essa integração afetiva é possível dançar investimentos imaginários que sustentem a realização de nossos projetos (projetar é fazer!).

Jogar capoeira para realizar um projeto de utilidade ou beleza não é tarefa fácil, pois estamos acostumados a seguir planos coreográficos e ideológicos já estabelecidos por mestres autoritários que não nos deram a chance de dançar conforme nossa música. O capoeirista, na boa malandragem, vai forjar essa chance.

Um dos momentos mais esperados na capoeira é o da roda, poder ‘vadiar’ sem o compromisso de repetir um movimento em determinado momento pré-estabelecido. Não tem nada melhor que filosofar sobre essa possibilidade instaurada pela capoeira. Contudo, grande pode ser o lamento por muitas das vezes não se conseguir no “vamos-ver” do jogo de fazer o que gostaríamos. Parece que ainda o projeto de fazer não foi incorporado mesmo depois daquela sequência tão repetida nos treinos.

Depois de aceitar nossos obstáculos pessoais na roda de capoeira (imitando a roda da vida), podemos tentar interpretar que a beleza não esteja somente na apresentação de movimentos bem executados e harmônicos com o companheiro de jogo. A coragem de se expor para jogar, poder confiar seu corpo e sua proteção a alguém com quem joga pode ser bonito simplesmente pelo enfrentamento às vulnerabilidades de ataques, que não pretendem em sua verdade se realizar, mas apenas de dar a chance de rir de nossas fraquezas, de nosso despreparo, nossa pouca agilidade para “pensar” um golpe ou um contra-golpe para o que os mais experimentados da roda podem nos trazer.

A capoeira pode ajudar na conquista de uma autocrítica, na instilação de esperança em conseguir fazer o que propomos, na mobilização subjetiva e objetiva para sair da intensa vulnerabilidade que estamos quando não nos enxergamos. O desejo de exercitar o respeito aos capoeiristas, com suas autoridades, forças, gingas e fraquezas, leva, sem dúvidas, a nossa brincadeira de roda brasileira, a ser um patrimônio da humanidade.

 

Elise Alves dos Santos,

bailarina”, aluna do mestre Tatu de capeira regional.

 

Goiânia, 20 de janeiro de 2016.

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Cabelo vai, cabelo vem. E eu fico feliz por isso.

Cortei meu cabelo recentemente. Passados dois meses ainda me estranho no espelho. Freud, em seu artigo “O estranho”, traduzido depois como “O inquietante” de 1919, afirmou que é raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigações estéticas, mesmo quando a estética é definida como teoria das qualidades de nosso sentir e não é limitada à teoria do belo. Mas vamos lá dizer que os psicanalistas também se inquietam. Eu já estava flertando com a ideia de uma nova imagem há algum tempo, mas senti-me ainda mais motivada para cortar os cabelos por razões solidárias.
Uma amiga em tratamento quimioterápico mobilizou (sem saber) a inciativa de alguns familiares e amigos mais próximos: as meninas cortando os cabelos e os meninos raspando-os. Nós contribuímos na campanha de voluntários para confecção de perucas com uma infinidade de fios, junto com várias outras adeptas que “radicalizaram” com cortes ousados em suas cabeças.
Depois de uma série de comentários de colegas, amigos, familiares, parentes e até desconhecidos, fico pensando como este ato de mudança no visual afeta cada um de nós em suas realidades. Freud, mesmo após a Primeira Guerra, já havia dito que “algo tem que ser acrescentado ao novo e não familiar, a fim de torná-lo inquietante”.
Minha amiga, a quem eu me solidarizei, retribuiu o carinho com uma visita alegre e bem-humorada. E eu fico feliz por isso. Este corte rendeu muitos fios, como disse, mas rende também algumas linhas de reflexão interessantes.
Acostumada com um visual tradicional – o qual me acompanhou por muitos anos – surpreendi-me com os elogios e parabéns pela atitude. Certamente me identifiquei com o modelo de longas madeixas clássicas (e ainda acho bonito como, provavelmente a maioria das mulheres) desde cedo. E acho que a experiência de ver a própria imagem de rapunzel duplicada no espelho, como se dia após dia, repetidamente, o “espelho, espelho meu” dissesse algo de minha eterna existência da qual eu me habituei a reconhecer, de meu perdurar onipotente.
Também me inquietei com manifestações opostas, em que eu percebi o desagrado ou espanto, freado por alguns adjetivos, sobre ser corajosa, revolucionária e ainda de estar irreconhecível. Chamou atenção uma expressão incomum: “Agora você tá suruca!”. Já tinha ouvido falar este nome, mas nunca para dizer sobre alguma atriz linda-maravilhosa que surucou o cabelo. Busquei o significado do dicionário para trazer a tona a significação de termo tão estranho. E “suruca” se tratava de algo que foi desabado, ruinado, afundado. E quando escutei o significado dado por regionalismos rurais, de que este era o termo para se referir às galinhas que tinham sido depenadas para o abate, confirmei que não era bem o elogio que queria ouvir.
Logo tratei – na brincadeira da conversa – de informar que eu não queria ser chamada assim, e que era preferível um elogio tradicional. Depois, lembrei-me de que não queria esperar muito do tradicional e amenizando minha demanda de amor, falando disso em minha análise pessoal, “decidi” me inquietar com outras coisas, ou de outra forma com os efeitos de meu acontecimento.
Alguns poucos homens de nossa cidade me apresentaram suas reações “em favor” ao meu corte: que me notaria numa festa, que eu estava mais sexy, e outras manifestações que agradariam a satisfação de suas fantasias. Ainda bem que meu marido se incluiu nesta categoria! Outros, que antes só passavam seu olhar por mim, literalmente me pararam para lamentar (hoje posso rir disso): “Nossa… agora vai demorar a crescer, não é?” em tom de profundo lamento. Outro, mais recriminativo e questionador: “Não, não faz isso não! Por que você cortou o cabelo?” ou ainda “Cadê seu cabelo?”.
Não se trata de julgar aqui as preferências estéticas e fantasias de cada um. Convido à crítica da resistência para o novo. Uma amiga muito querida hoje mesmo me mostrou que havia cortado o cabelo, bem curto como cortei, e me chamou de “amiga inspiradora”. E eu fico feliz por isso.
Penso que nossa cultura possa estar em transição. E isso afete cada vez mais nossos modos de nos apresentarmos. Tenho um irmão viajador que está sempre em busca de novas moradas. Em visita à última cidade onde morou, Berlim – conhecida como a capital criativa da Europa – vi cabelos de todos jeitos. Penteados despenteados, cabelos coloridos e multicoloridos em todas as idades. O padrão de Berlim é não ter um padrão. O que está na moda em Berlim? Acho que um fashionista diria: tudo! Uma guia turística brasileira, moradora de Berlim desde a época do muro, confirma minha teoria de que depois do nazismo, os alemães não aceitam a menor manifestação de violência, o que dirá de uma ditadura do pai da moda.
Embora aqui, em nossa vila ainda tenhamos uma raiz romântica da cultura colonial, subservientes aos padrões trazidos por nossos conquistadores, típico de quem espera o príncipe libertá-la do castelo, tenho visto mulheres desta época desapegadas de um cabelão assumirem a experiência da novidade, saindo de seus castelos e indo para a rua pedir uma experiência fantástica de corte daquilo que lhes pesa no cocuruto.
Acho bonito ver a força da indústria têxtil goiana mostrar em suas vitrines estilos diversos, cores variadas para uma mesma estação, como que assumindo que em nosso país não faz muito sentido delimitar rigidamente padrões para quatro estações nunca bem definidas. Estamos criando coragem para sermos diferentes na vida estética, ética e política, mas como custa ousar ser diferente.
Pagar o preço de autencidade pode ser mais em conta quando assumimos a experiência de mudança e nos tornamos autores de nossa história, descobridores de nosso território-corpo, dissolutores da resistência de complexos infantis inerentes à nossa pátria, e às nossas vidas particulares. Estou curtindo meu cabelo curtinho. Vou deixar o cabelo crescer de novo para ver qual imagem mais me agradará ou talvez aderir à moda berlinense de sempre ter uma mudança para enfrentar as ameaças fantasiosas ou reais de perda. Para isso, meus caros, vale muito a pena de pagar pela própria análise pessoal. Lembro de meu percurso iniciado há três anos atrás. E eu fico feliz por isso.
Por fim, tem um aspecto dos mais importantes que pretendo falar para finalizar este falatório. É a respeito do mais forte personagem do Antigo Testamento. O famoso Sansão, em sua lenda perde a força para enfrentar seus inimigos quando seus cabelos são cortados por sua amada Dalila. Diferente de Sansão, não precisamos enfrentar adversidades como se elas fossem leões e inimigos para serem mortos. E oposto, também pode ser verdadeiro, é cortando os cabelos que ganhamos força.
Quando nossos cabelos crescerem de novo, lentamente, talvez comecemos a perceber que ganhamos forças justamente nesse tempo mais contemporâneo que antigo, em que sabemos acolher os cortes que nos chegam. Sim, porque podemos escolher um novo corte de cabelo, mas às vezes não. O sentimento inquietante de vivenciar um novo acontecimento pode vir de uma angústia diante da impotência ou ainda de um desejo ou crença infantil de que podemos ter controle sobre nossas experiências.
Às vezes, como dizem os franceses em sua gramática, nós temos nossos cabelos cortados. Talvez reconhecendo nossas castrações, possamos nos tornar dignos dos acontecimentos em nossas vidas, cujo brilho e esplendor é o que damos sentido e o sentido que damos. Talvez seja preciso se solidarizar com suas próprias causas para ser capaz de se solidarizar com os outros (em) nós. Obrigada e, eu fico feliz por isso, mesmo com o mal-estar próprio de nossa civilização.

Elise Alves dos Santos.

Goiânia, 12 de dezembro de 2015.

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