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Crônica do funcionário fantasma

É fim de ano, a cidade está vazia, o trânsito nas ruas tranquilo, o despertar da manhã surge meio caduco. Os trabalhadores que não estão em férias ou recesso perambulam em seus carros, trocam os passos cansados à espera de um novo ano que possa trazer renovação. 

Taís – trabalhadora a quem vou preservar a identidade dando este nome – dirige seu carro em direção ao trabalho presencial, depois de muito teletrabalho realizado nos períodos duros da pandemia. Sai de casa e lembra do conserto que precisa providenciar para seu carro que foi recentemente batido num certo ponto por um “motoboy”, que na verdade era um homem bem adulto, pobre, preto e mal pago e que se atropelou em cima de seu carro na pressa das entregas que precisava fazer. 

Ela vai parando nos semáforos, que fazem a coreografia da frustração. A cada quarteirão, o que estava aberto se fecha, como se estivesse esperando ela chegar perto, para então se fechar caprichosamente. Ela espera abrir o sinal verde apertando o canto da boca, aumentando suas rugas de expressão como se isso aliviasse um pouco a espera forçada.

Embora seu movimento “natural” fosse o de seguir rodando, ela ia parando, pisando no freio, para logo depois passar ao acelerador. Seu passo sob rodas queria se calcular fluido, contínuo nos pedais, mas a interrupção se impunha, um corte de luz vermelha se impunha.

O carro ao lado avança e no torpor do começo do dia Taís avança também, sem pensar aciona o acelerador, pois “o sinal abriu”. Mas um lapso de lucidez a faz olhar pra cima e ver que o maldito sinal ainda estava fechado. Era apenas um transgressor transformando o espaço coletivo conforme seu valor individual.

Sem perceber ela acaba furando o sinal vermelho, mas só o primeiro, o segundo e o terceiro foram atravessados já bastante acordada para analisar o risco a ser assumido de ganhar alguns minutos de espera ou segundos… O fantasma trans se apossou de Taís, querendo ela também seguir seu caminho transformando condições, transformando-se, pelo menos no trânsito, numa dirigente livre das amarras luminosas.

No trajeto para o prédio onde trabalha, ela se dá conta que o motorista transgressor era um colega, funcionário público que sempre vira nos arredores. Após alguns meses de observação coletiva, este homem foi identificado como aquele que “bate o ponto e vai embora”. Ele já havia sido notado anteriormente por Taís e outras colegas, aprisionadas aos ponteiros invisíveis do relógio computadorizado. 

A revelação é intimamente escandalosa, ele bate no ponto da injustiça que acidenta nosso transporte para o trabalho. Todavia, o bochicho é estranhamente silencioso, como se as pessoas não pudessem deixar de escutar a vontade própria de ter o privilégio de voltar a trabalhar em casa. Nessa altura, o teletrabalho já tinha sido extinguido após ciclos de vacinação contra a COVID 19. 

A trabalhadora dedicada, cumpridora de horário e mais que isso, realizadora de trabalhos importantes para o serviço público, se incomoda com essa espécie de liberdade torta que faz ela se deparar com aquela figura trapaceira todos os dias, burlando o sistema de frequência. 

As teorias da conspiração começam a surgir, os fantasmas primeiros são de Taís. Estava diante de seus olhos, o homem que representava os fantasmas do clientelismo: era um amigo do rei que podia executar ordens que permitissem ele não ficar para trabalhar. Batia seu ponto na ida e na volta do turno matutino e nada mais fazia para fazer jus ao salário que recebia? Não é possível, o homem devia ter um problema de saúde e foi liberado para fazer teletrabalho. Será? seu esquema não podia ser revelado, senão muitas pessoas iriam querer o mesmo. Mas houve tanta economia, e tanta gente compromissada na época do trabalho! Taís não podia ser ingênua de pensar que os funcionários seguiram fazendo suas funções quando ninguém podia ver de perto. 

Um dia ela adianta o passo para chegar ao suposto funcionário fantasma e contar ao “decrépito” (ela fala dele assim entre as quatros paredes de sua cabeça mas não ousa desrespeitá-lo a par de sua raiva despalavrada legítima) com uma suavidade estudada que ele a havia influenciado no trânsito mesmo sem saber que estava fazendo isso. Seguindo seu avanço apesar do sinal vermelho. Ele se ri, e conta ter percebido que meu carro sempre fazia o mesmo percurso que o dele. Taís passa a saber que tinha em comum com o funcionário fantasma o fato de que residiam na mesma vizinhança. Um sentimento de rejeição surge despontando como que dizendo “eu não sou como esse cara”.

O reconhecimento facial e intencional era incontornável, poucas são as pessoas que usam máscaras neste momento. Eles passam a se cumprimentar, comentam do elevador que não funciona. As oportunidades de saber o nome e o andar do prédio onde o espectro “trabalha” surgem e com ela a pergunta interior se ela deveria denunciar o funcionário fantasma que faz inveja a quem queria pelo menos o retorno da possibilidade de trabalhar no ambiente doméstico. 

Taís encerra o último dia do ano pensando nos grandes investimentos em cursos de ética que seu chefe maior tem feito ao longo dos últimos anos. Será que ele ou a mídia gostariam que ela denunciasse o fantasma suspeito? Ou seria ela apenas a testemunha de fantasmas aprisionados em casas mal-assombradas? Taís se despede do colega perguntando a ele saindo, quando ela está chegando: “Já vai?” e ele confessa seu “ato falho” programado respondendo ter esquecido o guarda-chuva no carro. É tempo de chuva, e as histórias fantasmagóricas escorrem nas bocas de lobo da cidade.

Goiânia, 29 de dezembro de 2022.

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Sobre exercer a psicologia

O dia do (a) psicólogo (a) vem aí e todo ano paramos para lembrar que durante todos os outros dias do ano, os psicólogos mantêm um compromisso comum com a qualidade dos serviços profissionais que presta à coletividade. Compromisso com a construção da cidadania, seu fundamento enquanto ciência e profissão.
O dia 27 de agosto foi escolhido para relembrar a data da regulamentação da profissão por meio da Lei nº 4.119/1962. Este ano (2022) o Brasil completa 60 anos de regulamentação da psicologia enquanto profissão. Goiás conta com 49 anos de história da criação do primeiro curso de Psicologia. Depois disso, outras tantas faculdades foram criadas e formam psicólogos que hoje são mais de 425.968 no Brasil e 12.508 em Goiás. Sendo Goiás o 11º Estado com maior número de psicólogos do país (CFP, 2022).
A psicologia como profissão tem uma história de ser revolucionária, de descolar-se da filosofia e da religião, de abandonar a ignorância e buscar um papel subversivo diante do status quo. A história da profissão é uma história de conquistas, de capacidade de transformar para além das aparências, de questionar para mudar.
A Psicologia, para além de uma profissão, mercado, sustento e emprego, representa uma identidade em que ser psicólogo é adotar um paradigma, situar-se diante princípios, forma de responsabilidade diante da vida, de olhar criticamente o mundo. Tornar-se psicólogo é perder a ingenuidade, mas ao mesmo tempo reconhecer a fragilidade diante do humano. O conhecimento cobra um investimento e a ignorância é um lugar confortável. E temos hoje tantos modismos que defendem conhecimentos tão confortáveis quanto enganosos.
O Código de Ética do Psicólogo traz em ser Artigo 1°, que é dever do psicólogo prestar serviços psicológicos utilizando “conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional” (CFP, 2005). Além disso, nossas próprias experiências de tratamento são fundamentais se quisermos nos dispor a tratar de alguém, para que assim o próprio sujeito que sofre possa forjar seu tratamento junto a este profissional em formação continuada, sempre inacabada. Todavia, a experiência não dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo ou mesmo a especulação, mas força a não dispensar a observação dos fatos (SANTOS, 1987/2018).
Quem reconhece que a própria tarefa é árdua, senão impossível, desperta medo, descrença ou incômodo em quem assume o lugar perene de suposto saber e que se mete a dizer que por ter feito um curso qualquer está pronto e acabado para lidar com problemas alheios, pois teve “sua própria experiência”. Na época em que explodiu a moda coaching, parece que alguns profissionais (inclusive psicólogos!) os achavam tão sedutores no que se refere às promessas de intervenção no comportamento que passaram a se empenhar para também se denominarem coaches. Nesse sentido, Freud (1926/2014) ponderou:
Quando se levanta uma questão da física ou da química, quem sabe que não possui “conhecimento especializado” guarda silêncio. Mas se nos arriscamos a fazer uma afirmação de natureza psicológica, temos de esperar julgamento e contradição vindos de toda a parte (…). Cada qual tem sua vida psíquica, então cada qual se considera um psicólogo. Mas isso não me parece bastar como qualificação. Conta-se que uma mulher se oferecia para trabalhar cuidando de crianças e, ao lhe perguntarem se também sabia lidar com bebês, respondeu: “Claro, eu também já fui bebê”. (FREUD, 1926/2014, p. 137)

Assim, misturaram-se profissionais com alguma experiência e outros que se aventuravam a oferecer serviços ainda que sem recursos teóricos para sustentar a observação e a escuta técnica qualificada. Para muitos bastava eleger um líder da autoajuda e máximas convocatórias da felicidade para ofertar abstrações motivacionais de cunho individualista.
Logo, os psicólogos e demais profissionais de saúde mental viram sua área de competência ser infringida por propostas pós-modernas de trabalho precarizado, de gente que em sua maioria, tentando sair das condições de trabalho insatisfatórias, baseados em modismos de conteúdos questionáveis para se aventurar em “novas” propostas e antes de tudo tentar salvar a si próprio do mal-estar no mundo do trabalho.
Nesse sentido, vemos que a adesão a tal mentalidade tem forte interesse mercadológico. Grandes instituições como a Rede Globo, por exemplo, se vendeu para o Instituto Brasileiro de Coach (IBC) ao inserir uma cena em uma novela de horário nobre, “O outro lado do paraíso” (2017), para promover coaches e desfazer das terapias psicológicas. Promover tais “metodologismos” incentiva a sociedade a se colocar na contramão da defesa por profissionais competentes, responsáveis e especializados e a acreditar que podem ser substituídos por coaches, consteladores, executores de círculos integrativos, charlatães e amadores, especialmente porque tais iniciativas são trabalhos menos qualificados e mais baratos para se contratar.
Figueiredo (1997) apontou que alguns psicólogos e alguns psicanalistas menos sérios viraram conselheiros sentimentais e modelos de comportamento charmosos. Quase 20 anos após esta crítica de Figueiredo para o campo da psicologia, vemos, com o auxílio da mídia, os modismos de entendimento acerca do humano serem incorporados à vida cotidiana de variadas camadas da população. O coaching, a constelação familiar, o eneagrama, a “lei da atração”, as terapias de autoajuda, etc. convertem-se em metodologias que encobrem uma visão de homem e de mundo altamente subjetivista e individualista.
O filme, “Eu, Daniel Blake” (2016), ilustra a tendência de contratação de pessoal sem qualificação especializada para atender e avaliar a condição de saúde de um trabalhador. É sabido que lideranças atuais de hegemonia científica e política, exercidas pelos países norte-americanos e mais recentemente pelos latino-americanos, têm desfavorecido a formação das ciências humanas.
Com isso, essas novas metodologias assimiladas pela sociedade têm se tornado uma forma de manter a ilusão da liberdade e da singularidade de cada um, em vez de compreender e explicar o que há de ilusório nessas ideias (FIGUEIREDO, 1997). É assim que a psicologização da vida quotidiana tem nos levado a pensar o mundo social e a nós mesmos a partir de uma visão bem pouco crítica.
A vertente psicológica que se liga aos modismos popularizados tem servido para sustentar a palavra de ordem “cada um na sua, pensando os seus problemas e defendendo os seus interesses e a sua felicidade” (FIGUEIREDO, 1997, p. 87). Numa mistura de concepções do senso comum ou baseadas em teorias psicológicas, em pressupostos humanistas sobre a liberdade do homem e num estilo de administração empresarial nitidamente comportamentalista, esse discurso (que soa como o de um pastor protestante americano, e isto é mais do que uma coincidência) prega um paradoxal reforçamento do “eu” com sua submissão a um conjunto de regras de gerenciamento da própria vida. Segundo este autor, a industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição de prioridades científicas.
Os coaches não são reconhecidos pelos Conselhos Profissionais, conforme Nota do CRP 01 (2019): “Não reconhecemos o Coach e o Analista Comportamental como profissões haja vista que suas práticas interferem diretamente nas práticas profissionais da Psicologia (Art. 13º da Lei 4.119/62)”. Também não constam na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Previdência (BRASIL, 2022).
No entanto, a força do apelo é grandiosa, bem como os interesses que subjazem essas iniciativas. A questão é que, com ou sem formação por lugares coachianos, isso que se propõe tem se mostrado um tanto catastrófico. Justamente por não haver estudo sistematizado daquilo que somente o curso de Psicologia em sua abrangência tem a oferecer. Os coaches se utilizam de conhecimentos advindos da Psicologia, de forma duvidosa e clandestina, colocando em risco a população (CRP 01, 2019).
Assim, as proposições da moda não preenchem exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina, ao contrário, pertencem a uma massa de coisas ditas, do surgimento de enunciados desprovidos de estudo e de escuta técnica qualificada.
No mundo em que vivemos, ou ainda, sendo humanos como somos, o trabalho do psicólogo está longe de ser desnecessário e extinto, ainda que a onda mercadológica do momento ofereça produtos ingênuos e sem discernimento para abordagem das questões humanas. Na ótica das ciências da gestão, porém, o trabalho é desconectado de um sentido político, de uma realidade histórica, onde os trabalhadores não são seres humanos, são recursos humanos.
Conforme CFP (2019) é preciso fundamentar sua atuação profissional, obrigatoriamente, em conhecimentos, técnicas e instrumentos psicológicos reconhecidos cientificamente; construir argumentos consistentes da observação de fenômenos psicológicos; empregar referenciais teóricos e técnicos pertinentes.
As “novas metodologias” utilizadas na contemporaneidade no campo da saúde mental mostram-se, em última análise, como mecanismos de domínio psicopolítico do trabalhador ou de manipulação psicológica como diria o professor Roberto Heloani (2003). O nosso papel de analistas de saúde comprometidas (os) com a ciência e o conhecimento é o de incomodar. Feliz dia do incômodo e, também, feliz dia do psicólogo.

Referências

BRASIL. Classificação Brasileira de Ocupações. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/downloads.jsf Acesso em: 04 de agosto de 2022.

BRASIL. Lei Nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Disponível em: https://transparencia.cfp.org.br/wp-content/u ploads/sites/19/2017/05/Lei-4119_1962.pdf Acesso em: 24 de julho de 2022.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução CFP Nº 010, de agosto de 2005. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, 2005.

_________. Conselho Federal de Psicologia. Resolução Nº 06 de 29 de março de 2019. Institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP nº 15/1996, a Resolução CFP nº 07/2003 e a Resolução CFP nº 04/2019.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). A Psicologia brasileira apresentada em números. Disponível em: http://www2.cfp.org.br/infografico/ quantos-so mos/. Acesso em: 26 de julho de 2022.

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO DISTRITO FEDERAL (CRP 01/DF). Nota orientativa sobre a prática de coaching. Comissão de Orientação e Fiscalização (COF), 26 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.crp-01.org.br/page_3908/Nota%20t%C3%A9cnica%20sobre%20a %20pr% C3%A1tica%20de%20Coaching Acesso em: 04 de agosto de 2022.

Eu, Daniel Blake; Direção: Ken Loach. Roteiro: Paul Laverty. Reino Unido, 2017. (101 min).

FREUD, S. A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial (1926). In: ______. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Obras Completas v. 17. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1926/2014.

FIGUEIREDO. L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 1997.

HELOANI, J. R. Gestão e organização do capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

O OUTRO LADO DO PARAÍSO; Criador: Walcyr Carrasco Direção: André Felipe Binder e Mauro Mendonça Filho. TV Globo. Brasil, 2017 (172 episódios).

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 1987/2018.

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Arrumar a casa de trabalho

Desde a mudança de prédio do Cerest Goiás, no final de 2021, atravessamos a avenida 136 que delimita o setor marista do setor sul de Goiânia, trazendo quilos de história na forma de caixas, documentos, pastas, e materiais diversos que nos acompanham há vários anos. As coordenadoras das áreas de saúde do trabalhador solicitaram os préstimos de “santa ajuda” de nossa equipe para arrumar os armários da nossa casa de trabalho. 

Comecei a empreitada, lembrando de uma conversa com colegas de trabalho sobre nossos traços obsessivos necessários para um trabalho de triagem e revisão. E é bem dizendo tal característica, que incentivamos este trabalho de arrumação que precisa de uma disponibilidade, para lançar mão da organização nossa de cada dia. Mãos à obra para enfrentar o caos dos materiais desconhecidos e esquecidos.

 Desde 2015 trabalho no Núcleo de Psicologia do Cerest com o agravo de transtornos mentais relacionados ao trabalho, e como psicanalista, posso dizer que encontramos diversos conteúdos que quis chamar de “demandas reprimidas”. Escutar o que está no interior dos armários vai dando notícias da necessidade de reestruturar o serviço, aumentar a equipe, planejar a vida de trabalho. É preciso dar ouvidos para questionar o que foi escrito e não está mais atual, para compreender como o atual foi mudado em função do passado construído.

Abrimos as comportas dos armários e um mundaréu de coisa misturada vai surgindo. A arrumação faz saber que muita gente boa de serviço já fez trabalhos fundamentais dos quais se não tivéssemos notícias, estaríamos perdendo tempo com o retrabalho. Para usar a metáfora da psicanálise diria que o retorno do recalcado implica numa compulsão à repetição, às vezes por profundo desconhecimento da existência de algo que está lá, mas não se sabe ainda. 

Mudança pede mudança. Para (re)existir o corpo precisa estar em movimento. O pedido das coordenadoras conclamou a exumação de corpos de papeis, que puderam ter sua devida destinação, muitos para a reciclagem, outros para o “arquivo morto”. Outros mereceram a necessária ressuscitação, sua digitalização, idealizamos a criação de espaços físicos específicos para cada agravo à saúde do trabalhador. A nomeação de cada espaço, feita pela simples etiquetação nas estantes dos armários, permitiu dar visibilidade aos assuntos que temos guardado. A tarefa parece enorme quando temos armários abarrotados. E é mesmo, por isso, fazer um “intensivo”, “uma força tarefa” pode ser uma alternativa, mas a proposta de uma pasta por dia também funciona. O importante é que mesmo com pouca disponibilidade de tempo, a proposta de cuidar dos guardados não se perca em meio às diversas demandas que cada serviço apresenta.

As atribuições do Cerest  previstas na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora vão ganhando nova história no coração do Brasil, ao fim e ao cabo da arrumação, que bem da verdade, sempre deve estar em manutenção. Saber o que um serviço de saúde possui e guarda, revela sua história enquanto instituição e a história de seus trabalhadores, suas iniciativas e desistências. Muitas são as razões para as mudanças nas equipes, e para o redirecionamento dos trabalhos. De toda forma, há uma perda considerável quando servidores responsáveis por determinados serviços mudam de local de trabalho, se aposentam ou ainda, se  demitem. Pior ainda, é quando os que querem continuar são impedidos em função de contratos temporários precarizados, suas produções são interrompidas. 

Tenho a impressão de que por esses e outros motivos,  muitos dos trabalhos em saúde do trabalhador são “crianças engatinhando”, que quando deixadas sozinhas, sem a presença de seus responsáveis, atrasam o começo de seu caminhar, manquejando desequilibrados sem onde se apoiar. Assim como a educação permanente que defendemos em saúde, o acompanhamento do trabalho quando inoperante, gera perda de autonomia e não se desenvolve, pois vão lamentavelmente perdendo a força das pernas.

Serviços como os que temos na jovem história do Brasil, também não deveriam ser abandonados. O trabalho só acontece com a força dos que podem e querem trabalhar. Quando não há concurso para admissão de novos trabalhadores, quando o dimensionamento da demanda é ignorado, quando não há respeito e valorização do trabalhador, os serviços vão ficando deficitários e em alguns aspectos tornam-se incapazes de cumprir o combinado.

Os trabalhadores que se mantém, pelos variados motivos, seguem investindo, em suas frentes de trabalho, aumentando o espaço que precisamos para guardar, ainda que temporariamente, uma história que deve ser lembrada aos jovens servidores que virão depois que nós tivermos ido embora. Esse texto tem a intenção de compartilhar essa experiência, de propor a escrita da história de cada Cerest, único em cada região. 

Quando escrevemos, algo se imortaliza pela letra compartilhada. Sabemos, uma de nossas poucas certezas, que mais cedo ou mais tarde, iremos todos morrer, mas o SUS não pode morrer. Quando podemos transmitir (BARROS, 2007), mais que nossos genes, mas a preservação de experiências de importância histórica, neste caso, da conquista e defesa do SUS em ações singelas, seja a de arrumação de um armário que ganha em seus guardados, espaço e nome, confiamos no trabalho do impossível, que forjamos pela via da renovação das propostas, de planos, projetos e de ações que podem se perpetuar ao longo do tempo.

Texto publicado originalmente em https://renastonline.ensp.fiocruz.br/blogs

Referências

BACHELARD, Gaston. La Poétique de l’espace. Troisième Edition.  Presses Universitaires de France. Bibliothèque de Philosophie Contemporaine, 1961. 

BARROS, R. M. M. A escrita feminina. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud: UERJ, Instituto de Psicologia, 2007.

GOES, M. Santa ajuda. Canal GNT. Disponível em: https://gnt.globo.com/programas/santa-ajuda/ Acesso em: 15/02/2022. SANTOS, R. Força para continuar lutando em defesa da Saúde. In: O SUS não pode MORRER. Revista Nacional de Saúde. Edição 05. Ano 2. Set/Out 2017. 

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A importância do nome próprio do trabalhador: por uma política linguística de respeito

Se é a fonte social do sofrimento a que mais devasta o ser humano, seguimos com Freud (1930) na perspectiva de tornar a clínica da saúde mental do trabalhador um instrumento de mitigação dos danos trazidos pelos vícios de linguagem cometidos nas relações interpessoais. Questões como a importância do nome próprio podem estar ligadas a diversos aspectos presentes na definição de casos de transtornos mentais relacionados ao trabalho (TMRT), que envolvem uma série de sintomas e diagnósticos dos mais variados (Brasil, 2019).
Assim, o trabalhador que tenha manifestado quaisquer das descrições de casos de TMRT, não deve ser chamado de “chorão/chorona”, “medroso”, “complicado” ou “problemático”, nem rotulado por quaisquer diagnósticos. A defesa pela vida passa pela defesa do nome próprio, que também é o nome social escolhido pelo próprio trabalhador. Na falta deste documento ou desta informação, pergunte ao colega como ele prefere ser chamado. Pensar e rever nossas práticas discursivas nos ambientes de trabalho são medidas de prevenção aos possíveis agravamentos da saúde mental dos trabalhadores.
Freud (1901/1996) ao escrever sobre os lapsos da fala demonstrou que mesmo sendo aparentemente simples, eles podem ser explicados pela interferência de uma ideia meio suprimida que está fora do contexto intencionado. Esquecer o nome de alguém está dentre os vários exemplos que cita em Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana. A distorção de um nome, quando intencional, equivale a um insulto (idem, p. 94), os floreios arrogantes, erros propositais na articulação fonética do nome, a incapacidade de diferenciar nomes de colegas, a substituição de um nome por outro, cuja carga afetiva se caracteriza por tons de exagero, sarcasmo ou ambiguidade (“querido”, “querida”) ou apelidos não-consentidos caem na mesma esparrela.

A distorção de um nome tem o mesmo sentido de seu esquecimento; fica apenas a um passo da amnésia completa. Freud cita o trabalho de Ernest Jones para dar relevo ao fato de que “não há meio mais seguro de afrontar alguém do que fingir ter esquecido seu nome; assim se transmite a insinuação de que a pessoa tem tão pouca importância a nossos olhos que não damos ao trabalho de lembrar seu nome”. Freud conta que alguém uma vez disse “Freuder” em vez de “Freud”, por ter pouco antes proferido o nome de Breuer, e que, em outra ocasião, falou do método de tratamento “Freuer-Breudiano”, provavelmente era um colega não muito entusiasmado com o trabalho desenvolvido por Freud e Breuer. O exemplo é antigo e também muito atual.

Em fevereiro deste ano, foi veiculada a notícia de que a prefeitura de Goiânia terá de pagar a indenização no valor de 20 mil reais à servidora que sofreu assédio moral no trabalho, chamada de “doentinha” e “bichadinha” (Silva, 2022).
Não dizer o nome próprio das pessoas expressa o não-dito da falta de entusiasmo em realçar a diferença que cada trabalhador traz em sua subjetividade, que em última instância significa desumanizar o trabalhador. Veja como as expressões verbais direcionadas a um trabalhador podem configurar-se em condutas de assédio moral no trabalho (HIRIGOYEN, 2004): generalizar nomes ou apelidos, chamar todos os trabalhadores de “Zé”, por exemplo, ou referir-se com tom pejorativo por meio de expressões como “chão-de-fábrica” ou “os peões”, “badecos”, e até mesmo a generalização « pessoa », cuja categoria remete a um dispositivo excludente já que traz a ideia – proveniente da origem romana do vocábulo teatral persona – é de que alguém se reduziria a uma máscara sobreposta ao rosto.

O nome próprio, segundo Gori (1998, p. 138) “não tem que significar” nem mesmo um adjetivo qualquer, pois eles remetem a eles mesmos. Fazer significar um nome é o mesmo que cometer um sacrilégio, transgredir um tabu, realizar um sacrifício que desnuda o caráter insustentável e evanescente das marcas de nossa identidade e filiação.

É no mínimo elegante o alerta para o uso de categorias que tomam o todo da identidade de um trabalhador por uma parte das suas características ou vínculos de trabalho, tal como se diz que fulano é aquele deficiente, doente, comissionado, ou estagiário etc., como se o sujeito fosse reduzido a uma determinada condição ou particularidade de sua existência.

Quando um trabalhador passa por alguma situação em que sua produtividade ou sua disponibilidade para o trabalho sofre um decréscimo, por vezes ele recebe a pecha de “problema”, pois aquele que o julga sem conhecer sua história, desconsidera – por ignorância – as circunstâncias vividas pelo trabalhador e os mecanismos, inconscientes ou não, utilizados para dar conta de lidar com o sofrimento.
Outra distorção comum, em especial no mundo empresarial, é a substituição de “trabalhador” por “colaborador”, “associado” ou outra terminologia que enfoque o espírito participativo, ao invés da pirâmide hierárquica (Gosdal, 2016, p. 100) ou da diferença de classes. Um dentre tantos modismos de mau gosto, que subsume o peso que este nome tem enquanto conceito, cidadania, política pública, direitos humanos e trabalhistas. Trabalhador é, segundo a Portaria de Consolidação Nº 5, de 28 de setembro de 2017, todo aquele que independentemente de sua localização, urbana ou rural, de sua forma de inserção no mercado de trabalho, formal ou informal, de seu vínculo empregatício, público ou privado, autônomo, doméstico, aposentado ou demitido. Todo trabalhador é objeto e sujeito da Vigilância em Saúde do Trabalhador.
Seis anos depois de escrever a Psicopatologia da Vida Cotidiana, Freud incluiu uma grande nota de rodapé, que prefiro citar literalmente:

Pode-se também observar que são especialmente os aristocratas que se inclinam a distorcer os nomes […] a quem consultam, donde podemos concluir que, em seu íntimo, eles os desprezam, apesar da cortesia com que costumam tratá-los. (…) poucas pessoas conseguem evitar uma ponta de ressentimento ao descobrirem que seu nome foi esquecido, particularmente quando tinham a esperança ou a expectativa de que ele fosse lembrado (…) já que o nome é parte integrante da personalidade (Freud, 1901[1907]/1996, p. 95).

Sabendo do contexto sócio-histórico da sociedade vienense em que Freud viveu, entendemos a identificação dos aristocratas. No Brasil, em nossa realidade contemporânea sabemos que as sutilezas da manipulação psicológica do mundo do trabalho extrapolam o uso pelos aristocratas e se estendem em quaisquer status sociais, aparentemente onde a própria subjetividade dos agressores em potencial esteja fragilizada em sua própria auto-afirmação.
Por outro lado, Freud faz lembrar, a partir das considerações de Jones, que poucas coisas são mais lisonjeiras para a maioria das pessoas do que serem cumprimentadas pelo nome próprio. E cita o caso da grata surpresa de quando um personagem importante como Napoleão se faz mostrar como um grande líder, mestre na arte de bem relacionar-se com seus recrutas; em meio à desastrosa campanha da França, em 1814, ele deu uma surpreendente prova de sua memória nesse sentido. Numa cidadezinha perto de Craonne, lembrou-se de que conhecera o prefeito De Bussy há mais de vinte anos. De Bussy encantado com o reconhecimento pôs-se imediatamente a serviço de Napoleão com zelo extraordinário.
No contraponto da atitude de Napoleão, temos diversas condutas e escolhas nas relações interpessoais cujos registros psíquicos vão se acumulando para o desencadeamento de casos de TMRT em suas mais variadas possibilidades de manifestações (Brasil, 2019). Estamos falando do mais imediato contato com o trabalhador, ou seja, o vocativo utilizado para lhe convocar, que ao ser substituído ou apagado, desvaloriza o nome próprio, despersonalizando o trabalhador, reduzindo-o à subordinação da escolha do outro por um nome que não lhe é próprio.
Reiteramos o canal de comunicação com o Núcleo de Psicologia do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador para demandas de supervisão e suporte técnico em ações e projetos de vigilância em saúde mental do trabalhador (nucleodepsicologiacerestgo@gmail.com).
Sugiro ainda que se busque um psicanalista para empreender junto a você a sua análise pessoal, acompanhada de seus atos, falhos ou intencionais. Haja vista que os nomes e referências ditos ou não-ditos, dizem mais de quem os pronuncia ou os relega ao apagamento, e mais cedo ou mais tarde, as formações de compromisso retornam e reclamam seu justo lugar.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação Nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 190, 3 de outubro de 2017. Seção 1, p. 360.
_______. Ministério da Saúde. Manual Técnico do Curso Básico de Vigilância em Saúde do Trabalhador no Sistema Único de Saúde [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde; Fundação Oswaldo Cruz. Brasília, 2018.
_______. Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública. Nota Informativa Nº 94/2019 – DSASTE/SVS/MS. Orientação sobre as novas definições dos agravos e doenças relacionados ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Brasília, 2019.

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Mulheres (mães) e saúde mental nos trabalhos – Parte I

“Fulana é como uma mãe pra mim aqui no trabalho”, essa mesma fulana trabalhadeira, que oferece afeto e serviços, chega em casa e encarna a matriarca que cuida de tudo. Aos poucos a carga fica muito pesada e ela não consegue sustentar tantos trabalhos. A angústia proveniente de um local de trabalho afeta o sujeito por onde ele for, seja o trabalho de dentro ou fora de casa. Em decorrência da pandemia, o limite dentro-fora de casa fica tênue especialmente para os que passaram a exercer suas funções em regime de teletrabalho.

No consultório escuto as queixas de mulheres que trabalham “como se fosse uma mãe” para o marido. O “como se” é vivido de diversas formas de maternagem, seja na expectativa e cobrança dos cônjuges, seja no cumprimento desta expectativa pelas mulheres que tentam “fugir” ao conflito de não corresponder mais às expectativas. Os desejos, os direitos, e os projetos de vida das mulheres são postos em questão.

É como se houvesse um pacto silencioso pré-nupcial em que o “combinado” de que a mulher continue sendo a dona da casa e de todas as suas responsabilidades. Tendência esta que a atual geração está tentando romper. As funções maternas são importantes, mas se exercidas em exclusividade consomem qualquer sujeito além da conta. Porque é isso: a conta não fecha sem a divisão dos trabalhos não-remunerados e ou não-reconhecidos.

Noto que grande parte do sofrimento está enraizado em crenças e valores que formam a base cultural brasileira: machista, sexista e classista. Nossa herança histórica delegou às mulheres o lugar de objetos sexuais para os homens e de facilitadoras de condições propícias para o bem-estar de todas as pessoas.

Essas raízes culturais foram plantadas no Brasil a partir de 1850, com a criação da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro, época em que o discurso médico ganha força na proposta de controlar e prevenir doenças de salubridade e mortalidade na formação das cidades. Nessa perspectiva o discurso médico delega à mulher um novo estatuto dentro da família. A mulher que, na época colonial, estava submetida totalmente ao poder do marido, ao lado dos filhos e escravos, passa a ser valorizada como esposa e mãe, ganhando maior autoridade e responsabilidade pelo espaço doméstico, o que relativiza o poder do marido no núcleo familiar.

Essa mudança visou, enquanto projeto social, basicamente a colocar a assistência aos filhos como atribuição materna, já que preservar a infância era uma das estratégias para o controle da mortalidade. O discurso médico com sua racionalidade produz argumentos que devem provar que a mãe é a pessoa mais adequada para cuidar das crianças. “Nascida para o casamento e para a vida doméstica”, o valor da mulher estava na sua condição maternal (VIEIRA, 2002, p. 30).

A partir da segunda metade do século XX, a multiplicidade nos papéis das mulheres (e homens) e suas respectivas funções sociais começam a mudar a partir da inserção das mulheres no mercado trabalho (SANTOS, 2016). A saúde mental das mulheres no trabalho só pode ser entendida a partir da contextualização de várias dimensões da vida, por exemplo, o trabalho que realizam no âmbito doméstico. Se por um lado a realização profissional das mulheres tenha melhorado sua autoestima, o acúmulo de papéis, o aumento do número de família monoparentais chefiadas por mulheres e a discriminação em relação ao gênero têm trazido maiores índices de transtornos psicológicos em mulheres quando comparadas com homens (DINIZ, 2004).

É preciso salientar que o maior número de famílias monoparentais são chefiadas por mulheres negras, que padecem pela carência financeira e falta de suporte social para o cuidado dos filhos. As mulheres sofrem pelo fato dos filhos permanecerem longas horas sozinhos e expostos a perigos presentes nos locais de moradia. A longa jornada de trabalho, associada ao estresse de dormir pouco e passar um número grande de horas se deslocando da periferia para o local de trabalho, são também fatores que prejudicam a saúde física e mental.

É importante mencionar ainda a exposição a situações de risco no próprio trabalho, como é o caso do assédio frequente nas relações entre patrão-empregada. As mulheres pobres, desamparadas, imigrantes, refugiadas, indígenas recebem pouca atenção em todo o continente americano. A ameaça da perda de emprego no caso de gravidez ou a dificuldade de acesso à promoção ou mesmo rebaixamento de cargo são fontes de pressão sobre as mulheres que acabam postergando o casamento ou a maternidade, ou até mesmo abdicam destes papéis em função do investimento no projeto profissional (DINIZ, 2004). Tais condições psicológicas, sociais e institucionais podem trazer prejuízos sérios à qualidade de vida.

As mulheres executam mais tarefas familiares que os homens, mesmo quando ambos os parceiros trabalham em tempo integral. As pesquisas de Rexroat e Sheman (1987) citadas por Bee (1997) mostram que a carga semanal de trabalho delas possui várias horas a mais – o que intensifica o conflito proveniente da interação casamento-família-trabalho e os impactos na saúde mental – uma vez que os papéis sexuais tornam-se mais tradicionais após o nascimento de um filho. 

Na vida em casal, apenas cerca de ⅕ do trabalho doméstico é realizado pelos homens. O mais curioso, é que sentindo-se “encarregadas”, repetindo um lugar de subalternidade em relação ao trabalho doméstico, muitas mulheres sobrecarregadas, sentem-se agradecidas pela parca “ajuda” realizada pelos cônjuges, muitas das vezes a custa de desgastes na relação, em função dos “pedidos reiterados de companheirismo”.

Embora as mulheres ainda apresentem índices de mortalidade mais baixos do que os homens na maioria das áreas, conforme elas entram na força de trabalho essa realidade muda. A tendência a procurar atendimento preventivo de forma mais frequente que os homens pode interferir na disponibilidade de informações de saúde, cujos dados apontam índices mais elevados de sintomas (Brown, 1995). O índice de mortalidade materna no Brasil, segundo Diniz e De Bolle (2020) é um indicador importante que revela a desigualdade na economia do cuidado com as mulheres.

Três fenômenos contemporâneos que têm um impacto profundo sobre a saúde mental da mulher: a violência, o exercício de múltiplos papéis e a “feminização da pobreza” que ocorre em todo mundo (DINIZ, 2004). O caráter informativo ou denunciatório desta temática tem como objetivo provocar mudanças nas decisões referentes às políticas públicas (na maior parte das vezes representadas por homens). Trata-se de incentivar uma transição de valores em nossa cultura, incluindo investimento financeiro em políticas para promover a equidade de gênero.

Dentre algumas ações possíveis, propõe-se inserir na agenda de discussões a extensão do tempo conferido para licença paternidade, isonomia salarial (a renda média das mulheres não alcança 60% do rendimento médio dos homens) e promoção do cuidado para com as mulheres. É preciso desconstruir o estereótipo de exclusividade da função de cuidadoras para as mulheres.

A paternidade não pode ser reduzida ao papel de provedor financeiro e omissão de participação na rotina. A realidade vivida na Finlândia no que se refere às políticas relativas à maternidade e vida familiar é ainda um sonho para o Brasil, que muito precisa ainda desenvolver a cultura da economia de cuidado. Questionar os modelos restritivos de casamento, família, maternidade e paternidade é função de cada cidadão e atinge diretamente a saúde das mulheres.

Os tempos de trabalho precisam ser revistos, pois a cada dia a tarefa de conciliar cuidados dos filhos, consigo própria e com as demandas profissionais e conjugais tem se tornado insustentável. A não-reprodução de situações de dominação e opressão contra a mulher passa pela escuta de nossa cultura. A notificação de casos suspeitos e ou confirmados de transtornos mentais relacionados ao trabalho e as ações de vigilância em saúde do trabalhador deve considerar o gênero como categoria de análise.

À medida que o desemprego aumenta – questão de saúde – as mulheres são duas vezes mais prejudicadas que os homens. Dos casos de adoecimento psíquico notificados em Goiás, 79% foram categorizados como pertencentes ao sexo feminino. Nesse sentido, o gênero é uma categoria de análise importante para discutirmos a situação de saúde em Goiás, que ratifica – a partir dos dados do Sistema Nacional de Agravo de Notificações – SINAN (COUTINHO & SANTOS, 2021; DINIZ, 2004) – a presença de transtornos de humor, transtornos neuróticos, do estresse e somatoformes nas trabalhadoras de Goiás e também do Brasil. É preciso mais cuidado para as trabalhadoras e mães que historicamente ficam sozinhas com a carga do cuidado com outro ser humano. A vivência da maternidade é um trabalho e deve ser respeitada e valorizada, tornando possível estar no mundo não só como mulheres cuidadoras, mas mulheres cuidadas.

Referências

BEE, Helen. Desenvolvimento Social e da Personalidade no início da vida adulta. In: _____. O ciclo vital. Tradução Regina Garcez. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 412-452.

BROWN, Fredda Herz. O impacto da morte e da doença grave sobre o ciclo de vida familiar. In: Carter, Betty; McGoldrick Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma Estrutura para a Terapia Familiar. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese. 2 ed. Artmed, 1995, pp. 393-414.

COUTINHO, Ana Flávia e SANTOS, Elise Alves. (2021). Análise de dados do SINAN de transtornos mentais relacionados ao trabalho. Disponível sob solicitação para: nucleodepsicologiacerestgo@gmail.com

DINIZ, Débora; DE BOLLE, Monica. As Mulheres na Pandemia e a Economia do Cuidado. Transmitido em 03/08/2020. Acesso em 23/03/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uxdh2Pxi4es

DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.

SANTOS, Elise Alves. Novos tempos para os homens. Revista Urologia em Goiás. Ano 1, nº 2, maio/julho de 2016, pp. 11-12.

VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Antropologia e Saúde.  Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, pp. 84.

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Minhas impressões sobre a neuropsicanálise

Voltando de Paris sem ter tido a chance de escutar Mark Solms por lá em uma conferência de poucos lugares, intitulada “O espírito, o cérebro e o mundo interno”, que seria discutida por René Roussillon, fiz então, em abril de 2018, inscrição para o ainda mais chamativo subtítulo “Imunidade – memória – trauma” da Jornada de Psicanálise organizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, seguido do workshop de “Educação em Neuropsicanálise” a ser ministrado por Mark Solms, na época presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul.
A expectativa de que Mark Solms fosse falar em francês e articular os temas da imunidade, memória e trauma entre as neurociências e a psicanálise logo foi substituída pela impressão da dominação do discurso das neurociências proferido em inglês. Solms se disse freudiano, “só queria ver as coisas mais claramente”. O que aconteceu foi basicamente uma comparação da teoria psicanalítica da mente com as partes do cérebro. Sendo que Solms defendia a consciência do id, localizado no tronco cerebral! E que, toda consciência deriva do tronco encefálico superior. A consciência não vem da superfície, ela “sobe de baixo pra cima”, dizia ele considerando o posicionamento cerebral.
Solms afirmou que a neuropsicanálise não propõe uma nova escola de psicanálise, mas pretende ligar a psicanálise à neurociência. Ele diz que quer agregar algo à psicanálise, mas não quer tomar a psicanálise como uma neurociência. Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Segundo ele, hoje temos métodos para estudar a mente que não estavam disponíveis na época de Freud. Ele recomenda algumas mudanças, que não são radicais para atualizar a teoria e tornar o trabalho clínico mais fácil, além de facilitar o entendimento aos psiquiatras e neuropsicólogos de como trabalhamos. Nesse momento, eu não queria ter sido incluída naquele “nós”, pois não me vejo trabalhando a temática do adoecimento do ser humano, de forma tão naturalizada. Mas para ele era muito natural “levar a mente para a neurociência, trazer ganhos para a psicanálise com a neurociência, testar o que não é possível na psicanálise. Trazer o progresso para a psicanálise demonstrando coisas de maneira científica, trazer aos psicanalistas pontos de vista que as neurociências oferecem.” (sic).
Aquele homem de grandes dimensões queria dar uma dimensão “científica” à psicanálise e mostrar como Freud havia errado, pois o id seria fonte de toda consciência, uma vez que o córtex se torna consciente quando ativado. A consciência viria de núcleos sinalizados no mapa cerebral. De alguma forma, Solms queria mostrar que a diferente localização do inconsciente e do id traria implicações para a clínica psicanalítica. O presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul, na oportunidade de sua conferência teceu comentários que “comprovam” ou “desatestam” afirmações de Freud. Em outro momento, Freud estava certo, pois a neurociência comprovou que não é preciso ter consciência para executar funções cognitivas. Por outro lado, Freud errou, repetia Solms, pois sendo o id fonte de toda consciência, o ego seria uma “parte da mente” que tenta reduzir a consciência do id, que aspira ser inconsciente.
“Quando a memória de longo prazo se torna consciente, proteínas se dissolvem”, Solms dizia seguro que a consciência promove a dissolução do estado de memória, sendo que cada memória são milhões de neurônios. Talvez aqui neste ponto a ideia de trauma, imunidade e memória pudesse ter sido desenvolvida. No entanto, os três dias de jornada citavam en passant, genericamente, as “maravilhas da neurociência não especulativa” sem articular a temática proposta.
Os termos psicanalíticos pareciam ser aos poucos substituídos: “conflito” por “problema não resolvido”; “reminiscências” por “memória” ou “predição baseada em experiências passadas”; “identificação” por “memória procedural”; “ação motora” por “solução automatizada”; “processo primário” por “automaticidade”, citando como o córtex – enquanto superfície – não precisa de consciência para fazer seu trabalho. É do tronco encefálico de onde vem a fonte consciente, emocional, dizia ele. Por isso que até mesmo crianças anencéfalas exprimem emoções. O “reprimido” não retorna, mas seu efeito.
Para Solms a ideia freudiana de que a biologia é uma terra de possibilidades ilimitadas é justamente o que o faz se autointitular freudiano. Cita o entendimento de Freud de que a subjetividade parte da natureza e que um dia seria possível falar de uma neurobiologia da mente que não pertence exclusivamente à psicanálise. A ênfase à determinação biológica era o foco. Ele não fala em pulsão, desacredita a pulsão de morte. Professando o que mais parecia sua nova religião, dizia acreditar que Freud deveria ter ampliado seu conceito de instinto de vida e explicou fazendo uma performance de corpo e voz com grunhidos como ocorre o prazer (que só existe quando se pode senti-lo) ou desprazer quando se aproxima ou se distancia do Nirvana, enquanto homeostase.
Solms seguiu sua apresentação citando que a teoria das pulsões era a parte mais incerta da teoria de Freud, mas a tecnologia poderia solucionar o problema de entendimento acerca de como os instintos operam. O localizacionismo parece fundamental à Solms, que estava sempre pronto a apontar (com seu laser point) o sistema pré-consciente – consciente em um lugar no espaço cerebral. Dentro da consciência no córtex, ela vindo da parte endógena do cérebro.
O neurocientista que fez formação em psicanálise, contou ter tido o mesmo analista de Anna Freud, e propôs sete necessidades emocionais instintivas do ser humano (instinto sexual, volúpia, nutrição, busca, raiva, medo, apego e brincadeira), defendendo a aprendizagem para conciliá-las. Solms considerou uma fragilidade de Freud o fato de “nunca ter certeza de como classificar as forças motrizes da mente”. Para Solms é necessário classificar e numerar os instintos emocionais homeostáticos supostos na mente. Segundo ele, este seria o objetivo para se avançar nos campos da psicanálise. Ele declara sua intenção primeira ao receber um paciente em seu consultório: saber de que emoção sofre o paciente, pois cada sentimento significa coisas diferentes.
Neste ponto Solms confessou que sua preocupação em classificar os instintos não é a mesma em apresentar os nomes das estruturas cerebrais aos psicanalistas clínicos. Os questionamentos acerca de um exemplo de “instinto de preservar a vida diante de um leão” e outros mais dados por Solms são discutidos com a plateia. Dentre outros assuntos, os participantes de variadas escolas de psicanálise apresentaram perguntas que eu consideraria constrangedoras para ele. Algumas delas, a título de exemplo, fazia mais comentar, discutir, provocar que perguntar: remetiam à ideia de que o afeto é diferente da consciência de afeto (Green); sobre o aprendizado acerca do que é necessário para sobrevivência; sobre as representações (consciente e inconsciente) e para todas elas Solms, com uma tranquilidade assustadora, apontava regiões no cérebro para embasar sua resposta.
Solms apresenta dados de que lesões em determinadas regiões (lobotomia) e efeito de drogas psicotrópicas eliminam a ocorrência de sonhos, visto que é este trajeto no cérebro que é suprimido quando se utiliza antipsicóticos. Nesse sentido, Solms demonstra a comprovação da regressão tópica da área motora para a visual que ocorre em pacientes que podem sonhar. Apresenta curiosos dados de hipnogramas de pacientes que não regridem, não sonham, mostrando a diferença da eficiência do sono pelo número de vezes que o paciente acorda com um despertar breve.
Acerca do afeto da dor e da sua diferença com a sensação somática da dor e da emoção, Solms afirma que a dor da perda psíquica é acionada na mesma região da dor física, ambas comparadas à mesma química ligada aos opióides. A regressão da dor mental para dor física nos sonhos (inusual) é explicada por um deslocamento que promove essa confusão que facilita a aceitação da dor e a torna menos penosa. Trata-se de conversão masoquista da dor objetal.
Informações como esta chamam atenção para quem não tem (ou tem muito pouca formação nas ciências neurais), mas como pensar a conversão masoquista sem a metapsicologia freudiana ou ainda entender a pré-psicanálise como uma ciência natural pouco desenvolvida? A crença ou a paixão pela potência tecnológica nos produtos da aparelhagem médica traçam um caminho que oblitera o reconhecimento de um olhar impotente diante do real do cérebro. Um olhar para o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud e mesmo os demais textos freudianos considerados de cunho neurológico, merece o alerta para a consideração de que possuem desde muito cedo o propósito de articulação de conhecimentos adquiridos em suas pesquisas neurológicas e dos resultados de suas investigações na clínica das psicopatologias, articulação esta notável em obras posteriores. A teoria do psiquismo não prescinde completamente do caminho percorrido por Freud na neurobiologia.
De toda forma, Solms assume que tem uma receita, sabe como automatizar a receita. Receita de entendimento? Receita de tratamento? Penso que um discurso que se quer vendável mostrado nesta palestra e “workshop” de neuropsicanálise não são produtos que os psicanalistas mais críticos, ainda que dialogantes com as neurociências, queiram comprar.

Elise Alves dos Santos, 16/09/2020.

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É tempo de cuidar: a dica em prol da saúde mental

São 5:10 h da manhã, sábado. Não, eu não trabalho sábado. Muito menos preciso acordar regularmente nesse horário para cumprir algum compromisso. Mas é isso que aconteceu, após ontem eu ter sido questionada sobre a importância de se cuidar da saúde mental nesse momento. Esse é o horário  que costumo acordar durante a semana para “bater o ponto” às 7 h, quando meu corpo já vai despertando antes mesmo do despertador. O mesmo corpo que já foi acordado repetidas vezes ao longo de mais de 10 anos de serviço público. A história de trabalho fica marcada em nossos corpos, dominado pelo hábito de seguir normas. Mas aos sábados, não. Eu já ia dormir “pensando” que eu ia gozar de mais horas de sono, restabelecer a energia gasta durante a semana e era isso o que acontecia. Hoje me pego, após 15 anos de experiência no atendimento a pessoas estressadas, surtadas, angustiadas, sofridas com suas doenças pré-existentes, por situações de choques de gestão, a responder se é tempo de propiciar condições para realização de tratamentos contínuos para saúde mental. Meu inconsciente carregado de trabalho, me fazendo trabalhar, me pôs para acordar essa hora de sábado para tentar defender a saúde mental dos trabalhadores em tempo de pandemia.

Antes mesmo dos burburinhos da COVID-19, todos nós que atendemos na clínica sabemos que os horários pós-expediente, ou intervalos de almoço, são os horários mais disputados para quem solicita atendimento. Afinal, que patrão vai dispensar seu empregado por mais de uma hora por semana para ir à terapia? Sim, o deslocamento, o trânsito, a sessão de 50 minutos aproximadamente, o retorno, o trânsito de novo. Muitos desistem do projeto de cuidar de sua saúde psíquica porque tem casa e família para cuidar, academia para ir, enfim, são muitas frentes de trabalho e ocupação para além do emprego formal (ou informal). Isso nem sempre é resistência para começar um tratamento psicológico.

Com tantas coisas inéditas, absurdas, desamparadoras acontecendo, cada um vai utilizar dos mecanismos de defesa ou estratégias protetivas para tentar seguir uma rotina menos desconfortável no isolamento. Intuitivamente, muitos de nós já seguem as “dicas” nas quais eu mesma pesquisei para criar um material gráfico de cuidados de saúde mental na quarentena (obrigada Christian Dunker e Leilyane Masson). Mas seguir tais dicas, ainda que importantes para dar passos iniciais diante da mudança abrupta, são insuficientes no cotidiano em que cada um deve descobrir o que deseja fazer, o que pode fazer, o que consegue fazer.

Os bons conselhos, por melhores que sejam, podem funcionar como alimentos perecíveis próximos da data de vencimento. Você compra, usa rápido, porque sabe que dali a pouco não tem mais função de existir para você. Afinal, como começar um tratamento contínuo, que demanda tempo (pelo menos uma vez por semana) num sistema que não dá tempo para o que não seja diretamente produtivo para a empresa? A boa notícia é que os empresários, a duras penas e passos de tartaruga, estão entendendo que uma pessoa que não se cuida não tem condições de cuidar bem das funções que exerce no trabalho.

A psicoterapia e a psicanálise divergem desta proposta de aconselhamento diretivo, seja na forma de uma psicoterapia psicanalítica em que a função materna, de apoio, suporte, holding, esteja mais presente, ou ainda seja a psicanálise em “padrão ouro”, que nos proporciona insigths, uma maior aproximação com as raízes dos problemas, com nossa (e)terna compulsão a repetição e que nos põe a fazer melhores acordos com os dilemas vividos. Em qualquer uma dessas possibilidades, e até mesmo quando as duas vão coexistindo no processo de análise pessoal, é preciso tempo. Não basta ir lá na prateleira da saúde mental e pegar uma dica.

               Sem tempo para negacionismos, nosso corpo-psiquismo está também em estado de emergência, de alerta. A desorientação toma conta de todos. Uns mais, outros menos. Os que têm filhos, os que participam dos grupos de riscos, os idosos, e qualquer um tem motivos para se (pre)ocupar com o coronavírus e com uma nova rotina, com uma nova realidade em que somos justamente demandados a mudar hábitos para preservar a saúde. Não é só de lavar as mãos que o homem viverá, mas de toda palavra que ele possa expressar, cuidar, chorar, se apropriar e ressignificar. O tratamento psicológico, para quem nunca fez, vou explicar:  por mais breve que seja, precisa de uma periodicidade, de tempo e espaço, uma constância, que alterna presença e ausência, tem de ser assegurada.

Um intensivo de férias pode até ser uma alternativa para quem não tem tempo, mas a vida continua depois. Fazer terapia na quarentena é mais complexo ainda porque não estamos de férias, precisamos pensar e decidir uma série de ações no dia-a-dia. É justamente nesse momento tão delicado que começar um tratamento psicológico pode ser um excelente momento para iniciar os cuidados com sua saúde mental como projeto de vida. Lembrando que os períodos excepcionais, como o que vivemos agora, é tempo de crises, mas também de oportunidades para mudança. Sim, vai passar. Contudo, muito do sofrimento “congelado” na hora que precisamos agir, pode ficar ali guardado até uma hora que “vem do nada” em que ele pode “derreter” tempos depois que a poeira virulenta abaixar. Se antes da pandemia já precisávamos cuidar da saúde mental, agora mais do nunca, e depois, acredite, também!

O corpo dominado pela rotina, requerido a cuidar justamente de uma nova rotina, quer “dar conta do recado”, quer antecipar os riscos para evitá-lo. Estamos descobrindo também que o teletrabalho e o isolamento são realidades promissoras, com seus prós e contras, mas que em muitos casos, pode levar a trabalhar mais e também a perder a noção do tempo, acelerar. Isso não é uma regra, e vamos aprendendo a lidar (ou não!) com a singularidade de cada trabalhador, com seus valores incorporados, suas obsessividades, suas vontades de contribuir e às vezes até mesmo de serem “super-herois”, quando a maioria está apavorada, adoecida, enfim, nossos compromissos de excesso têm a ver com nossas configurações psíquicas prévias à pandemia, que vem acentuar nosso jeito de funcionar, jeito de trabalhar, jeito de adoecer. Sim, é preciso assumir a capacidade de repressão, de renúncia pulsional para fazer a civilização andar. Mas isso não nos torna o exemplo de profissional ideal para a saúde. Pode ser o ideal para um modelo que se apropria da força de trabalho do humano como se fosse outra coisa qualquer. Fingir que tudo está bem quando não está pode ser uma bomba-relógio. A pandemia trouxe várias questões, o que mais importa quando tudo importa? Sabemos que não podemos abraçar o mundo com as pernas, mas podemos cuidar dele, promovendo tempo e espaço para se cuidar da vida psíquica, pois é dela de onde vem nossa vontade de acordar, mas também pode ser dela, que abalada e ferida, pode-se chegar ao ponto de não querer mais levantar da cama.  

Há anos nossos pacientes nos perguntam se declaração de psicólogo pode ser aceita no trabalho. Nós fazemos os documentos necessários, afirmamos e informamos a importância do tratamento para o sujeito que nos procura. Mas e os empregadores? Quando estarão prontos para fazer sua parte, se o atendimento psicológico não puder acontecer durante o expediente de trabalho? Se não puder começar num momento de crise, então quando? Está na hora, com ou sem brechas na lei ou nas políticas das empresas, de forjar tempo e espaço para o cuidado com a saúde mental, de cuidar “de corpo e alma” de nosso maior patrimônio e matrimônio, que somos nós mesmos em nosso corpo-psiquismo. É tempo de cuidar para o humano, há tempos descuidado, não colapsar, para não ruir o sistema onde vive, trabalhando, trabalhando… É preciso que a atenção à saúde mental do trabalhador promova o trabalho psíquico de cuidado do trabalhador para que ele possa continuar a trabalhar, com segurança e qualidade para o trabalho, com segurança e qualidade para sua vida. Enfim, é tempo de cuidar! Elise Alves dos Santos, 04/04/2020, sábado de manhã.

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Somos todos bitolados?

Para essa provocação, gostaria primeiro de lembrar que a palavra “bitola” em português do Brasil, significa justamente a distância entre as faces de dois trilhos em uma via férrea. A bitola precisa ter o mesmo tamanho do eixo do trem, sem esse padrão o trem irá descarrilhar. Os brasileiros, pouquíssimo habituados com trens, falam – especialmente em algumas regiões do país – a palavra “trem” para se referir a algo que não conseguem nomear, seja por desconhecimento, preguiça ou simplesmente pelo costume. Talvez o mesmo acabe acontecendo com o uso do adjetivo “bitolado”, que vai ganhar outros sentidos graças à inventividade própria dos falantes brasileiros.

Logo, imagino que este não lugar entre os trilhos foi transformado numa ideia de alienação depreciativa para se dirigir aos bitolados. Paradoxalmente, é a bitola que marca a diferença no sentido de que não é nem trilho “A” nem trilho “B”. A bitola sustenta uma posição de vazio, angustiante, é verdade, porque sem resposta para ser considerada um trilho. Nesse sentido, os marginalizados costumam ficar em sua posição de nenhum entre duas margens. Geralmente são bitolados, rompidos de certa forma com uma realidade, sem lugar visível, descrentes de uma escolha, “escolhem” o próprio não lugar.

Como é difícil aceitar aquele que não está dentro dos trilhos, que não é nenhum trilho, talvez seja mais difícil ainda aceitar quem não está no mesmo trilho que Eu. Escuto as vozes que dizem acerca do comportamento alheio, os outros, o inferno que sempre são eles.

O trem passará sobre os trilhos, vai dobrar em uma direção ou outra conforme um caminho que já foi trilhado. Alguns passageiros convictos deste caminho pré-determinado não se preocupam mais aonde ele vai chegar e tentam sobreviver aos sacolejos, cada um a sua maneira. Outros, também incertos da viagem, querem apenas fazer uma boa viagem dentro do trem, sem se preocupar muito se às vezes ele se inclinará mais para um lado ou para o outro. Outros, quando conseguem avaliar as opções de maquinista, simplesmente gostariam de fazer valer a dignidade de sua escolha, quase inútil de que não gostaria de viajar com nenhum maquinista pavoroso, que não dá garantias de viagem digna.

Gosto de pensar que em outros mundos distantes do Brasil, os meios de transporte, especialmente os de sistemas férreos são mais “modernos” e trazem outras opções em que os trilhos e as bitolas não precisam mais existir. Fico pensando se a maior parte dos brasileiros continua desejando trilhar juntos com um coletivo e propor caminhos para cada maquinista fazer, pois ainda que a ordem de tráfego seja para cada um fazer o próprio caminho, ainda precisamos fazer a maior parte dele acompanhados.

Podemos cada um com sua diferença de espaço, eleger um grande maquinista que possa nos oferecer a maravilha de uma viagem desejada, podemos decidir entre os ruins, ou ainda, anular um dever de escolha bitolado que estamos há muito utilizando. Mas quando se é minoria e as vozes de quem fala não são “válidas”, resta o descontentamento de quem querendo pular fora do trem, precisa seguir viagem, ainda que tensa e insegura. Um verdadeiro trem fantasma!

 

Elise Alves dos Santos, 25 de outubro de 2018, dia da democracia.

 

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Entrevista À Bibliothèque Charcot

Desde quando soube da oportunidade de morar em Paris, imaginava-me trabalhando na Salpetrière, fazendo algum trabalho lá. Como muitos psicanalistas seguidores de Freud esse desejo de “refazer” seus passos ganhou força quando cheguei nos arredores do Hospital. Embora eu não tenha encontrado o famoso quadro de Pinel libertando as histéricas, tive a sorte de descobrir a Bibliothèque Charcot em um prédio ultra-moderno ao lado das construções mais antigas da Salpetrière.

A excelente recepção que tive por parte dos bibliotecários, em especial pelo trabalho de apresentação da biblioteca feito pelo biblioteconomista responsável –  Guillaume Delaunay –  foi determinante para reacender a fantasia de trabalhar nos lugares por onde Freud passou.

Assim que soube dos dossiês escritos pela pluma de Charcot referentes aos seus pacientes com Esclerose Múltipla (EM) e que ainda não haviam sido sequer numerizados, considerei que ali eu havia encontrado um tesouro perdido. O mestre de Freud estudava a histeria, desenhou um esquema do inconsciente, fascinou Freud. O que será que Charcot havia registrado nos dossiês de seus pacientes com EM? Que leitura psicanalítica eu poderia fazer desse material bruto? O que imaginei no princípio foi ganhando forma à medida que fui encontrando seu pensamento referente à histeria como base etiológica da Esclerose Múltipla.

Tive o incentivo de minha coorientadora do estágio de doutorado sanduíche, profa. Dra. Cristina Lindenmeyer da USPC – Paris 7, que me disse para seguir minha intuição. Com o auxílio e apoio de todos com quem me encontrei nesta cidade elegante, em especial, as pessoas de Guillaume Delaunay, Chantal Latin e madame Thomaz, meu trabalho pôde ser levado a diante. E foi assim que ao longo deste período de estágio, acabei transcrevendo cerca de 234 páginas referentes aos registros de 36 pacientes acompanhados por Charcot e alguns de seus colegas de trabalho entre 1859 à 1891.

Desde os antecedentes “hereditários” e antecendentes “pessoais” podemos ver os rastros da histeria que Charcot percebeu no trabalho de investigação e tratamento realizados por ele. A presença relevante de humores marcados por “tristezas violentas”, que às vezes foram descritas por histórias de estados “moralmente” dolorosos, são concomitantes às manifestações de dores fulgurantes nos membros do corpo.

Mais ao final do período de estágio me encontrei com uma grande figura da psicanálise contemporânea aqui na França, e falando com ela, tive como resposta à pergunta que fiz sobre a relação de amor entre Freud e Charcot, e as perspectivas de ligação entre Neurociências e Psicanálise, que Charcot “é uma figura que ficou no passado”.

Apesar de escutar essa posição de uma psicanalista historiadora, acredito que o contato direto com este material me permitiu fazer uma leitura que transcende a história de amor de Freud e Charcot. Trata-se da relação entre a Neurologia e a Psicanálise tão em voga nos dias de hoje. A pergunta que versa sobre a relação entre histeria e diversas doenças neurológicas autoimunes não perdeu o seu valor.

Observando a cidade, pude ver uma massiva publicidade incitando recursos para a pesquisa com Esclerose Múltipla aqui na França (assim como no Brasil), o trabalho que pude realizar no prédio do Instituto do Cérebro e da Medula Espinhal, onde está situada a Bibliothèque Charcot, pode me mostrar que este incentivo está presente na atitude das pessoas com as quais eu pude trabalhar. A escuta de Freud permitiu que ele ultrapassasse seu mestre, Charcot pôde dizer algo ao pai da Psicanálise. Descobrir o que está por detrás da letra, do estilo de escrita, e da língua do pai da Neurologia ainda pode dizer muito, ao meu ver, aos pesquisadores do corpo e de seus sintomas.

Paris, 28 de janeiro de 2018.

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Ensaios

O corpo em festa: o que acontece com todo esse bolo?

Não existe festa boa sem bolo e bolo bom tem que ter cobertura.  Mais do que isso, tem que estar bonito aos olhos meus e dos outros. Mas eis que o bolo não cabe na forma. Culpa de quem colocou ele na forma. Foi ingênuo, desavisado, incapaz de calcular ou de lembrar de olhar a altura do bolo. Olhou só pra largura e achou que ia caber perfeitamente na vasilha. Não! Não posso atribuir a causa desse “erro” pra pobre pessoa que teve a boa intenção de colocar o bolo no melhor lugar que tinha para ser levado para os cantos do mundo.  Então, a culpa é da forma, quem deu essa forma, quem a fabricou?  Muito rasa, quem colocou o bolo dentro dela não podia prever que o melhor podia ficar colado na sua tampa. O bolo não vai ficar perfeito de novo, nem aos olhos de quem o fez nem dos outros. Não, a culpa não é da forma, nem de quem a fez, de quem a fabricou. Já sei, a atribuição de causalidade para isso foi quem fez o bolo, colocou fermento demais, colocou sua pitada subjetiva  e o bolo cresceu muito. Talvez tenha sido as condições de pressão e temperatura a que ele foi submetido. Tudo para o bolo entrar na festa e ser aquele desejado pelos outros. Mas que vergonha de estar todo desfigurado da imagem que deveria ter, vai ficar lá feio dentro da tampa com suas culpas. Não. Ele vai ser aberto, fatiado, compartilhado e comido. Alguns vão gostar, outros nem tanto, mas pra falar dos culpados, entra na roda desde a decisão de fazer um novo corpo, com sua carga genética, sua história de ser desejado, encaixado numa forma, de se apresentar e ser apresentado,  a química do fermento e dos outros ingredientes, a adequação da temperatura a que foi cozido, seu acondiciomamento, pra dizer porque na hora boa dele viver sua vida de bolo gostoso e bonito, ele se bagunça todo porque ele foi feito para que sua tampa seja aberta para mundo e seja revelado em sua única forma possível. Como um fio desencapado, desprotegido, como assim um bolo de festa sem cobertura? Desprovido de sua funcionalidade e da razão pela qual foi feito. É isso mesmo? Que nada. Por acaso, tudo isso que aconteceu. E não por acaso, pode se ter um grande motivo pra passar os dedos na tampa e apreciar a cobertura de um modo inusitado. Aiai, o que mais se pode dizer sobre a constituição do sintoma dos sujeitos com doença autoimune?

Elise Alves dos Santos.

Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB).

Goiânia, 22 de abril de 2016.

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