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Mulheres (mães) e saúde mental nos trabalhos – Parte I

“Fulana é como uma mãe pra mim aqui no trabalho”, essa mesma fulana trabalhadeira, que oferece afeto e serviços, chega em casa e encarna a matriarca que cuida de tudo. Aos poucos a carga fica muito pesada e ela não consegue sustentar tantos trabalhos. A angústia proveniente de um local de trabalho afeta o sujeito por onde ele for, seja o trabalho de dentro ou fora de casa. Em decorrência da pandemia, o limite dentro-fora de casa fica tênue especialmente para os que passaram a exercer suas funções em regime de teletrabalho.

No consultório escuto as queixas de mulheres que trabalham “como se fosse uma mãe” para o marido. O “como se” é vivido de diversas formas de maternagem, seja na expectativa e cobrança dos cônjuges, seja no cumprimento desta expectativa pelas mulheres que tentam “fugir” ao conflito de não corresponder mais às expectativas. Os desejos, os direitos, e os projetos de vida das mulheres são postos em questão.

É como se houvesse um pacto silencioso pré-nupcial em que o “combinado” de que a mulher continue sendo a dona da casa e de todas as suas responsabilidades. Tendência esta que a atual geração está tentando romper. As funções maternas são importantes, mas se exercidas em exclusividade consomem qualquer sujeito além da conta. Porque é isso: a conta não fecha sem a divisão dos trabalhos não-remunerados e ou não-reconhecidos.

Noto que grande parte do sofrimento está enraizado em crenças e valores que formam a base cultural brasileira: machista, sexista e classista. Nossa herança histórica delegou às mulheres o lugar de objetos sexuais para os homens e de facilitadoras de condições propícias para o bem-estar de todas as pessoas.

Essas raízes culturais foram plantadas no Brasil a partir de 1850, com a criação da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro, época em que o discurso médico ganha força na proposta de controlar e prevenir doenças de salubridade e mortalidade na formação das cidades. Nessa perspectiva o discurso médico delega à mulher um novo estatuto dentro da família. A mulher que, na época colonial, estava submetida totalmente ao poder do marido, ao lado dos filhos e escravos, passa a ser valorizada como esposa e mãe, ganhando maior autoridade e responsabilidade pelo espaço doméstico, o que relativiza o poder do marido no núcleo familiar.

Essa mudança visou, enquanto projeto social, basicamente a colocar a assistência aos filhos como atribuição materna, já que preservar a infância era uma das estratégias para o controle da mortalidade. O discurso médico com sua racionalidade produz argumentos que devem provar que a mãe é a pessoa mais adequada para cuidar das crianças. “Nascida para o casamento e para a vida doméstica”, o valor da mulher estava na sua condição maternal (VIEIRA, 2002, p. 30).

A partir da segunda metade do século XX, a multiplicidade nos papéis das mulheres (e homens) e suas respectivas funções sociais começam a mudar a partir da inserção das mulheres no mercado trabalho (SANTOS, 2016). A saúde mental das mulheres no trabalho só pode ser entendida a partir da contextualização de várias dimensões da vida, por exemplo, o trabalho que realizam no âmbito doméstico. Se por um lado a realização profissional das mulheres tenha melhorado sua autoestima, o acúmulo de papéis, o aumento do número de família monoparentais chefiadas por mulheres e a discriminação em relação ao gênero têm trazido maiores índices de transtornos psicológicos em mulheres quando comparadas com homens (DINIZ, 2004).

É preciso salientar que o maior número de famílias monoparentais são chefiadas por mulheres negras, que padecem pela carência financeira e falta de suporte social para o cuidado dos filhos. As mulheres sofrem pelo fato dos filhos permanecerem longas horas sozinhos e expostos a perigos presentes nos locais de moradia. A longa jornada de trabalho, associada ao estresse de dormir pouco e passar um número grande de horas se deslocando da periferia para o local de trabalho, são também fatores que prejudicam a saúde física e mental.

É importante mencionar ainda a exposição a situações de risco no próprio trabalho, como é o caso do assédio frequente nas relações entre patrão-empregada. As mulheres pobres, desamparadas, imigrantes, refugiadas, indígenas recebem pouca atenção em todo o continente americano. A ameaça da perda de emprego no caso de gravidez ou a dificuldade de acesso à promoção ou mesmo rebaixamento de cargo são fontes de pressão sobre as mulheres que acabam postergando o casamento ou a maternidade, ou até mesmo abdicam destes papéis em função do investimento no projeto profissional (DINIZ, 2004). Tais condições psicológicas, sociais e institucionais podem trazer prejuízos sérios à qualidade de vida.

As mulheres executam mais tarefas familiares que os homens, mesmo quando ambos os parceiros trabalham em tempo integral. As pesquisas de Rexroat e Sheman (1987) citadas por Bee (1997) mostram que a carga semanal de trabalho delas possui várias horas a mais – o que intensifica o conflito proveniente da interação casamento-família-trabalho e os impactos na saúde mental – uma vez que os papéis sexuais tornam-se mais tradicionais após o nascimento de um filho. 

Na vida em casal, apenas cerca de ⅕ do trabalho doméstico é realizado pelos homens. O mais curioso, é que sentindo-se “encarregadas”, repetindo um lugar de subalternidade em relação ao trabalho doméstico, muitas mulheres sobrecarregadas, sentem-se agradecidas pela parca “ajuda” realizada pelos cônjuges, muitas das vezes a custa de desgastes na relação, em função dos “pedidos reiterados de companheirismo”.

Embora as mulheres ainda apresentem índices de mortalidade mais baixos do que os homens na maioria das áreas, conforme elas entram na força de trabalho essa realidade muda. A tendência a procurar atendimento preventivo de forma mais frequente que os homens pode interferir na disponibilidade de informações de saúde, cujos dados apontam índices mais elevados de sintomas (Brown, 1995). O índice de mortalidade materna no Brasil, segundo Diniz e De Bolle (2020) é um indicador importante que revela a desigualdade na economia do cuidado com as mulheres.

Três fenômenos contemporâneos que têm um impacto profundo sobre a saúde mental da mulher: a violência, o exercício de múltiplos papéis e a “feminização da pobreza” que ocorre em todo mundo (DINIZ, 2004). O caráter informativo ou denunciatório desta temática tem como objetivo provocar mudanças nas decisões referentes às políticas públicas (na maior parte das vezes representadas por homens). Trata-se de incentivar uma transição de valores em nossa cultura, incluindo investimento financeiro em políticas para promover a equidade de gênero.

Dentre algumas ações possíveis, propõe-se inserir na agenda de discussões a extensão do tempo conferido para licença paternidade, isonomia salarial (a renda média das mulheres não alcança 60% do rendimento médio dos homens) e promoção do cuidado para com as mulheres. É preciso desconstruir o estereótipo de exclusividade da função de cuidadoras para as mulheres.

A paternidade não pode ser reduzida ao papel de provedor financeiro e omissão de participação na rotina. A realidade vivida na Finlândia no que se refere às políticas relativas à maternidade e vida familiar é ainda um sonho para o Brasil, que muito precisa ainda desenvolver a cultura da economia de cuidado. Questionar os modelos restritivos de casamento, família, maternidade e paternidade é função de cada cidadão e atinge diretamente a saúde das mulheres.

Os tempos de trabalho precisam ser revistos, pois a cada dia a tarefa de conciliar cuidados dos filhos, consigo própria e com as demandas profissionais e conjugais tem se tornado insustentável. A não-reprodução de situações de dominação e opressão contra a mulher passa pela escuta de nossa cultura. A notificação de casos suspeitos e ou confirmados de transtornos mentais relacionados ao trabalho e as ações de vigilância em saúde do trabalhador deve considerar o gênero como categoria de análise.

À medida que o desemprego aumenta – questão de saúde – as mulheres são duas vezes mais prejudicadas que os homens. Dos casos de adoecimento psíquico notificados em Goiás, 79% foram categorizados como pertencentes ao sexo feminino. Nesse sentido, o gênero é uma categoria de análise importante para discutirmos a situação de saúde em Goiás, que ratifica – a partir dos dados do Sistema Nacional de Agravo de Notificações – SINAN (COUTINHO & SANTOS, 2021; DINIZ, 2004) – a presença de transtornos de humor, transtornos neuróticos, do estresse e somatoformes nas trabalhadoras de Goiás e também do Brasil. É preciso mais cuidado para as trabalhadoras e mães que historicamente ficam sozinhas com a carga do cuidado com outro ser humano. A vivência da maternidade é um trabalho e deve ser respeitada e valorizada, tornando possível estar no mundo não só como mulheres cuidadoras, mas mulheres cuidadas.

Referências

BEE, Helen. Desenvolvimento Social e da Personalidade no início da vida adulta. In: _____. O ciclo vital. Tradução Regina Garcez. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 412-452.

BROWN, Fredda Herz. O impacto da morte e da doença grave sobre o ciclo de vida familiar. In: Carter, Betty; McGoldrick Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma Estrutura para a Terapia Familiar. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese. 2 ed. Artmed, 1995, pp. 393-414.

COUTINHO, Ana Flávia e SANTOS, Elise Alves. (2021). Análise de dados do SINAN de transtornos mentais relacionados ao trabalho. Disponível sob solicitação para: nucleodepsicologiacerestgo@gmail.com

DINIZ, Débora; DE BOLLE, Monica. As Mulheres na Pandemia e a Economia do Cuidado. Transmitido em 03/08/2020. Acesso em 23/03/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uxdh2Pxi4es

DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.

SANTOS, Elise Alves. Novos tempos para os homens. Revista Urologia em Goiás. Ano 1, nº 2, maio/julho de 2016, pp. 11-12.

VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Antropologia e Saúde.  Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, pp. 84.

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Minhas impressões sobre a neuropsicanálise

Voltando de Paris sem ter tido a chance de escutar Mark Solms por lá em uma conferência de poucos lugares, intitulada “O espírito, o cérebro e o mundo interno”, que seria discutida por René Roussillon, fiz então, em abril de 2018, inscrição para o ainda mais chamativo subtítulo “Imunidade – memória – trauma” da Jornada de Psicanálise organizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, seguido do workshop de “Educação em Neuropsicanálise” a ser ministrado por Mark Solms, na época presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul.
A expectativa de que Mark Solms fosse falar em francês e articular os temas da imunidade, memória e trauma entre as neurociências e a psicanálise logo foi substituída pela impressão da dominação do discurso das neurociências proferido em inglês. Solms se disse freudiano, “só queria ver as coisas mais claramente”. O que aconteceu foi basicamente uma comparação da teoria psicanalítica da mente com as partes do cérebro. Sendo que Solms defendia a consciência do id, localizado no tronco cerebral! E que, toda consciência deriva do tronco encefálico superior. A consciência não vem da superfície, ela “sobe de baixo pra cima”, dizia ele considerando o posicionamento cerebral.
Solms afirmou que a neuropsicanálise não propõe uma nova escola de psicanálise, mas pretende ligar a psicanálise à neurociência. Ele diz que quer agregar algo à psicanálise, mas não quer tomar a psicanálise como uma neurociência. Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Segundo ele, hoje temos métodos para estudar a mente que não estavam disponíveis na época de Freud. Ele recomenda algumas mudanças, que não são radicais para atualizar a teoria e tornar o trabalho clínico mais fácil, além de facilitar o entendimento aos psiquiatras e neuropsicólogos de como trabalhamos. Nesse momento, eu não queria ter sido incluída naquele “nós”, pois não me vejo trabalhando a temática do adoecimento do ser humano, de forma tão naturalizada. Mas para ele era muito natural “levar a mente para a neurociência, trazer ganhos para a psicanálise com a neurociência, testar o que não é possível na psicanálise. Trazer o progresso para a psicanálise demonstrando coisas de maneira científica, trazer aos psicanalistas pontos de vista que as neurociências oferecem.” (sic).
Aquele homem de grandes dimensões queria dar uma dimensão “científica” à psicanálise e mostrar como Freud havia errado, pois o id seria fonte de toda consciência, uma vez que o córtex se torna consciente quando ativado. A consciência viria de núcleos sinalizados no mapa cerebral. De alguma forma, Solms queria mostrar que a diferente localização do inconsciente e do id traria implicações para a clínica psicanalítica. O presidente da Associação de Psicanálise da África do Sul, na oportunidade de sua conferência teceu comentários que “comprovam” ou “desatestam” afirmações de Freud. Em outro momento, Freud estava certo, pois a neurociência comprovou que não é preciso ter consciência para executar funções cognitivas. Por outro lado, Freud errou, repetia Solms, pois sendo o id fonte de toda consciência, o ego seria uma “parte da mente” que tenta reduzir a consciência do id, que aspira ser inconsciente.
“Quando a memória de longo prazo se torna consciente, proteínas se dissolvem”, Solms dizia seguro que a consciência promove a dissolução do estado de memória, sendo que cada memória são milhões de neurônios. Talvez aqui neste ponto a ideia de trauma, imunidade e memória pudesse ter sido desenvolvida. No entanto, os três dias de jornada citavam en passant, genericamente, as “maravilhas da neurociência não especulativa” sem articular a temática proposta.
Os termos psicanalíticos pareciam ser aos poucos substituídos: “conflito” por “problema não resolvido”; “reminiscências” por “memória” ou “predição baseada em experiências passadas”; “identificação” por “memória procedural”; “ação motora” por “solução automatizada”; “processo primário” por “automaticidade”, citando como o córtex – enquanto superfície – não precisa de consciência para fazer seu trabalho. É do tronco encefálico de onde vem a fonte consciente, emocional, dizia ele. Por isso que até mesmo crianças anencéfalas exprimem emoções. O “reprimido” não retorna, mas seu efeito.
Para Solms a ideia freudiana de que a biologia é uma terra de possibilidades ilimitadas é justamente o que o faz se autointitular freudiano. Cita o entendimento de Freud de que a subjetividade parte da natureza e que um dia seria possível falar de uma neurobiologia da mente que não pertence exclusivamente à psicanálise. A ênfase à determinação biológica era o foco. Ele não fala em pulsão, desacredita a pulsão de morte. Professando o que mais parecia sua nova religião, dizia acreditar que Freud deveria ter ampliado seu conceito de instinto de vida e explicou fazendo uma performance de corpo e voz com grunhidos como ocorre o prazer (que só existe quando se pode senti-lo) ou desprazer quando se aproxima ou se distancia do Nirvana, enquanto homeostase.
Solms seguiu sua apresentação citando que a teoria das pulsões era a parte mais incerta da teoria de Freud, mas a tecnologia poderia solucionar o problema de entendimento acerca de como os instintos operam. O localizacionismo parece fundamental à Solms, que estava sempre pronto a apontar (com seu laser point) o sistema pré-consciente – consciente em um lugar no espaço cerebral. Dentro da consciência no córtex, ela vindo da parte endógena do cérebro.
O neurocientista que fez formação em psicanálise, contou ter tido o mesmo analista de Anna Freud, e propôs sete necessidades emocionais instintivas do ser humano (instinto sexual, volúpia, nutrição, busca, raiva, medo, apego e brincadeira), defendendo a aprendizagem para conciliá-las. Solms considerou uma fragilidade de Freud o fato de “nunca ter certeza de como classificar as forças motrizes da mente”. Para Solms é necessário classificar e numerar os instintos emocionais homeostáticos supostos na mente. Segundo ele, este seria o objetivo para se avançar nos campos da psicanálise. Ele declara sua intenção primeira ao receber um paciente em seu consultório: saber de que emoção sofre o paciente, pois cada sentimento significa coisas diferentes.
Neste ponto Solms confessou que sua preocupação em classificar os instintos não é a mesma em apresentar os nomes das estruturas cerebrais aos psicanalistas clínicos. Os questionamentos acerca de um exemplo de “instinto de preservar a vida diante de um leão” e outros mais dados por Solms são discutidos com a plateia. Dentre outros assuntos, os participantes de variadas escolas de psicanálise apresentaram perguntas que eu consideraria constrangedoras para ele. Algumas delas, a título de exemplo, fazia mais comentar, discutir, provocar que perguntar: remetiam à ideia de que o afeto é diferente da consciência de afeto (Green); sobre o aprendizado acerca do que é necessário para sobrevivência; sobre as representações (consciente e inconsciente) e para todas elas Solms, com uma tranquilidade assustadora, apontava regiões no cérebro para embasar sua resposta.
Solms apresenta dados de que lesões em determinadas regiões (lobotomia) e efeito de drogas psicotrópicas eliminam a ocorrência de sonhos, visto que é este trajeto no cérebro que é suprimido quando se utiliza antipsicóticos. Nesse sentido, Solms demonstra a comprovação da regressão tópica da área motora para a visual que ocorre em pacientes que podem sonhar. Apresenta curiosos dados de hipnogramas de pacientes que não regridem, não sonham, mostrando a diferença da eficiência do sono pelo número de vezes que o paciente acorda com um despertar breve.
Acerca do afeto da dor e da sua diferença com a sensação somática da dor e da emoção, Solms afirma que a dor da perda psíquica é acionada na mesma região da dor física, ambas comparadas à mesma química ligada aos opióides. A regressão da dor mental para dor física nos sonhos (inusual) é explicada por um deslocamento que promove essa confusão que facilita a aceitação da dor e a torna menos penosa. Trata-se de conversão masoquista da dor objetal.
Informações como esta chamam atenção para quem não tem (ou tem muito pouca formação nas ciências neurais), mas como pensar a conversão masoquista sem a metapsicologia freudiana ou ainda entender a pré-psicanálise como uma ciência natural pouco desenvolvida? A crença ou a paixão pela potência tecnológica nos produtos da aparelhagem médica traçam um caminho que oblitera o reconhecimento de um olhar impotente diante do real do cérebro. Um olhar para o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud e mesmo os demais textos freudianos considerados de cunho neurológico, merece o alerta para a consideração de que possuem desde muito cedo o propósito de articulação de conhecimentos adquiridos em suas pesquisas neurológicas e dos resultados de suas investigações na clínica das psicopatologias, articulação esta notável em obras posteriores. A teoria do psiquismo não prescinde completamente do caminho percorrido por Freud na neurobiologia.
De toda forma, Solms assume que tem uma receita, sabe como automatizar a receita. Receita de entendimento? Receita de tratamento? Penso que um discurso que se quer vendável mostrado nesta palestra e “workshop” de neuropsicanálise não são produtos que os psicanalistas mais críticos, ainda que dialogantes com as neurociências, queiram comprar.

Elise Alves dos Santos, 16/09/2020.

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É tempo de cuidar: a dica em prol da saúde mental

São 5:10 h da manhã, sábado. Não, eu não trabalho sábado. Muito menos preciso acordar regularmente nesse horário para cumprir algum compromisso. Mas é isso que aconteceu, após ontem eu ter sido questionada sobre a importância de se cuidar da saúde mental nesse momento. Esse é o horário  que costumo acordar durante a semana para “bater o ponto” às 7 h, quando meu corpo já vai despertando antes mesmo do despertador. O mesmo corpo que já foi acordado repetidas vezes ao longo de mais de 10 anos de serviço público. A história de trabalho fica marcada em nossos corpos, dominado pelo hábito de seguir normas. Mas aos sábados, não. Eu já ia dormir “pensando” que eu ia gozar de mais horas de sono, restabelecer a energia gasta durante a semana e era isso o que acontecia. Hoje me pego, após 15 anos de experiência no atendimento a pessoas estressadas, surtadas, angustiadas, sofridas com suas doenças pré-existentes, por situações de choques de gestão, a responder se é tempo de propiciar condições para realização de tratamentos contínuos para saúde mental. Meu inconsciente carregado de trabalho, me fazendo trabalhar, me pôs para acordar essa hora de sábado para tentar defender a saúde mental dos trabalhadores em tempo de pandemia.

Antes mesmo dos burburinhos da COVID-19, todos nós que atendemos na clínica sabemos que os horários pós-expediente, ou intervalos de almoço, são os horários mais disputados para quem solicita atendimento. Afinal, que patrão vai dispensar seu empregado por mais de uma hora por semana para ir à terapia? Sim, o deslocamento, o trânsito, a sessão de 50 minutos aproximadamente, o retorno, o trânsito de novo. Muitos desistem do projeto de cuidar de sua saúde psíquica porque tem casa e família para cuidar, academia para ir, enfim, são muitas frentes de trabalho e ocupação para além do emprego formal (ou informal). Isso nem sempre é resistência para começar um tratamento psicológico.

Com tantas coisas inéditas, absurdas, desamparadoras acontecendo, cada um vai utilizar dos mecanismos de defesa ou estratégias protetivas para tentar seguir uma rotina menos desconfortável no isolamento. Intuitivamente, muitos de nós já seguem as “dicas” nas quais eu mesma pesquisei para criar um material gráfico de cuidados de saúde mental na quarentena (obrigada Christian Dunker e Leilyane Masson). Mas seguir tais dicas, ainda que importantes para dar passos iniciais diante da mudança abrupta, são insuficientes no cotidiano em que cada um deve descobrir o que deseja fazer, o que pode fazer, o que consegue fazer.

Os bons conselhos, por melhores que sejam, podem funcionar como alimentos perecíveis próximos da data de vencimento. Você compra, usa rápido, porque sabe que dali a pouco não tem mais função de existir para você. Afinal, como começar um tratamento contínuo, que demanda tempo (pelo menos uma vez por semana) num sistema que não dá tempo para o que não seja diretamente produtivo para a empresa? A boa notícia é que os empresários, a duras penas e passos de tartaruga, estão entendendo que uma pessoa que não se cuida não tem condições de cuidar bem das funções que exerce no trabalho.

A psicoterapia e a psicanálise divergem desta proposta de aconselhamento diretivo, seja na forma de uma psicoterapia psicanalítica em que a função materna, de apoio, suporte, holding, esteja mais presente, ou ainda seja a psicanálise em “padrão ouro”, que nos proporciona insigths, uma maior aproximação com as raízes dos problemas, com nossa (e)terna compulsão a repetição e que nos põe a fazer melhores acordos com os dilemas vividos. Em qualquer uma dessas possibilidades, e até mesmo quando as duas vão coexistindo no processo de análise pessoal, é preciso tempo. Não basta ir lá na prateleira da saúde mental e pegar uma dica.

               Sem tempo para negacionismos, nosso corpo-psiquismo está também em estado de emergência, de alerta. A desorientação toma conta de todos. Uns mais, outros menos. Os que têm filhos, os que participam dos grupos de riscos, os idosos, e qualquer um tem motivos para se (pre)ocupar com o coronavírus e com uma nova rotina, com uma nova realidade em que somos justamente demandados a mudar hábitos para preservar a saúde. Não é só de lavar as mãos que o homem viverá, mas de toda palavra que ele possa expressar, cuidar, chorar, se apropriar e ressignificar. O tratamento psicológico, para quem nunca fez, vou explicar:  por mais breve que seja, precisa de uma periodicidade, de tempo e espaço, uma constância, que alterna presença e ausência, tem de ser assegurada.

Um intensivo de férias pode até ser uma alternativa para quem não tem tempo, mas a vida continua depois. Fazer terapia na quarentena é mais complexo ainda porque não estamos de férias, precisamos pensar e decidir uma série de ações no dia-a-dia. É justamente nesse momento tão delicado que começar um tratamento psicológico pode ser um excelente momento para iniciar os cuidados com sua saúde mental como projeto de vida. Lembrando que os períodos excepcionais, como o que vivemos agora, é tempo de crises, mas também de oportunidades para mudança. Sim, vai passar. Contudo, muito do sofrimento “congelado” na hora que precisamos agir, pode ficar ali guardado até uma hora que “vem do nada” em que ele pode “derreter” tempos depois que a poeira virulenta abaixar. Se antes da pandemia já precisávamos cuidar da saúde mental, agora mais do nunca, e depois, acredite, também!

O corpo dominado pela rotina, requerido a cuidar justamente de uma nova rotina, quer “dar conta do recado”, quer antecipar os riscos para evitá-lo. Estamos descobrindo também que o teletrabalho e o isolamento são realidades promissoras, com seus prós e contras, mas que em muitos casos, pode levar a trabalhar mais e também a perder a noção do tempo, acelerar. Isso não é uma regra, e vamos aprendendo a lidar (ou não!) com a singularidade de cada trabalhador, com seus valores incorporados, suas obsessividades, suas vontades de contribuir e às vezes até mesmo de serem “super-herois”, quando a maioria está apavorada, adoecida, enfim, nossos compromissos de excesso têm a ver com nossas configurações psíquicas prévias à pandemia, que vem acentuar nosso jeito de funcionar, jeito de trabalhar, jeito de adoecer. Sim, é preciso assumir a capacidade de repressão, de renúncia pulsional para fazer a civilização andar. Mas isso não nos torna o exemplo de profissional ideal para a saúde. Pode ser o ideal para um modelo que se apropria da força de trabalho do humano como se fosse outra coisa qualquer. Fingir que tudo está bem quando não está pode ser uma bomba-relógio. A pandemia trouxe várias questões, o que mais importa quando tudo importa? Sabemos que não podemos abraçar o mundo com as pernas, mas podemos cuidar dele, promovendo tempo e espaço para se cuidar da vida psíquica, pois é dela de onde vem nossa vontade de acordar, mas também pode ser dela, que abalada e ferida, pode-se chegar ao ponto de não querer mais levantar da cama.  

Há anos nossos pacientes nos perguntam se declaração de psicólogo pode ser aceita no trabalho. Nós fazemos os documentos necessários, afirmamos e informamos a importância do tratamento para o sujeito que nos procura. Mas e os empregadores? Quando estarão prontos para fazer sua parte, se o atendimento psicológico não puder acontecer durante o expediente de trabalho? Se não puder começar num momento de crise, então quando? Está na hora, com ou sem brechas na lei ou nas políticas das empresas, de forjar tempo e espaço para o cuidado com a saúde mental, de cuidar “de corpo e alma” de nosso maior patrimônio e matrimônio, que somos nós mesmos em nosso corpo-psiquismo. É tempo de cuidar para o humano, há tempos descuidado, não colapsar, para não ruir o sistema onde vive, trabalhando, trabalhando… É preciso que a atenção à saúde mental do trabalhador promova o trabalho psíquico de cuidado do trabalhador para que ele possa continuar a trabalhar, com segurança e qualidade para o trabalho, com segurança e qualidade para sua vida. Enfim, é tempo de cuidar! Elise Alves dos Santos, 04/04/2020, sábado de manhã.

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Somos todos bitolados?

Para essa provocação, gostaria primeiro de lembrar que a palavra “bitola” em português do Brasil, significa justamente a distância entre as faces de dois trilhos em uma via férrea. A bitola precisa ter o mesmo tamanho do eixo do trem, sem esse padrão o trem irá descarrilhar. Os brasileiros, pouquíssimo habituados com trens, falam – especialmente em algumas regiões do país – a palavra “trem” para se referir a algo que não conseguem nomear, seja por desconhecimento, preguiça ou simplesmente pelo costume. Talvez o mesmo acabe acontecendo com o uso do adjetivo “bitolado”, que vai ganhar outros sentidos graças à inventividade própria dos falantes brasileiros.

Logo, imagino que este não lugar entre os trilhos foi transformado numa ideia de alienação depreciativa para se dirigir aos bitolados. Paradoxalmente, é a bitola que marca a diferença no sentido de que não é nem trilho “A” nem trilho “B”. A bitola sustenta uma posição de vazio, angustiante, é verdade, porque sem resposta para ser considerada um trilho. Nesse sentido, os marginalizados costumam ficar em sua posição de nenhum entre duas margens. Geralmente são bitolados, rompidos de certa forma com uma realidade, sem lugar visível, descrentes de uma escolha, “escolhem” o próprio não lugar.

Como é difícil aceitar aquele que não está dentro dos trilhos, que não é nenhum trilho, talvez seja mais difícil ainda aceitar quem não está no mesmo trilho que Eu. Escuto as vozes que dizem acerca do comportamento alheio, os outros, o inferno que sempre são eles.

O trem passará sobre os trilhos, vai dobrar em uma direção ou outra conforme um caminho que já foi trilhado. Alguns passageiros convictos deste caminho pré-determinado não se preocupam mais aonde ele vai chegar e tentam sobreviver aos sacolejos, cada um a sua maneira. Outros, também incertos da viagem, querem apenas fazer uma boa viagem dentro do trem, sem se preocupar muito se às vezes ele se inclinará mais para um lado ou para o outro. Outros, quando conseguem avaliar as opções de maquinista, simplesmente gostariam de fazer valer a dignidade de sua escolha, quase inútil de que não gostaria de viajar com nenhum maquinista pavoroso, que não dá garantias de viagem digna.

Gosto de pensar que em outros mundos distantes do Brasil, os meios de transporte, especialmente os de sistemas férreos são mais “modernos” e trazem outras opções em que os trilhos e as bitolas não precisam mais existir. Fico pensando se a maior parte dos brasileiros continua desejando trilhar juntos com um coletivo e propor caminhos para cada maquinista fazer, pois ainda que a ordem de tráfego seja para cada um fazer o próprio caminho, ainda precisamos fazer a maior parte dele acompanhados.

Podemos cada um com sua diferença de espaço, eleger um grande maquinista que possa nos oferecer a maravilha de uma viagem desejada, podemos decidir entre os ruins, ou ainda, anular um dever de escolha bitolado que estamos há muito utilizando. Mas quando se é minoria e as vozes de quem fala não são “válidas”, resta o descontentamento de quem querendo pular fora do trem, precisa seguir viagem, ainda que tensa e insegura. Um verdadeiro trem fantasma!

 

Elise Alves dos Santos, 25 de outubro de 2018, dia da democracia.

 

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Entrevista À Bibliothèque Charcot

Desde quando soube da oportunidade de morar em Paris, imaginava-me trabalhando na Salpetrière, fazendo algum trabalho lá. Como muitos psicanalistas seguidores de Freud esse desejo de “refazer” seus passos ganhou força quando cheguei nos arredores do Hospital. Embora eu não tenha encontrado o famoso quadro de Pinel libertando as histéricas, tive a sorte de descobrir a Bibliothèque Charcot em um prédio ultra-moderno ao lado das construções mais antigas da Salpetrière.

A excelente recepção que tive por parte dos bibliotecários, em especial pelo trabalho de apresentação da biblioteca feito pelo biblioteconomista responsável –  Guillaume Delaunay –  foi determinante para reacender a fantasia de trabalhar nos lugares por onde Freud passou.

Assim que soube dos dossiês escritos pela pluma de Charcot referentes aos seus pacientes com Esclerose Múltipla (EM) e que ainda não haviam sido sequer numerizados, considerei que ali eu havia encontrado um tesouro perdido. O mestre de Freud estudava a histeria, desenhou um esquema do inconsciente, fascinou Freud. O que será que Charcot havia registrado nos dossiês de seus pacientes com EM? Que leitura psicanalítica eu poderia fazer desse material bruto? O que imaginei no princípio foi ganhando forma à medida que fui encontrando seu pensamento referente à histeria como base etiológica da Esclerose Múltipla.

Tive o incentivo de minha coorientadora do estágio de doutorado sanduíche, profa. Dra. Cristina Lindenmeyer da USPC – Paris 7, que me disse para seguir minha intuição. Com o auxílio e apoio de todos com quem me encontrei nesta cidade elegante, em especial, as pessoas de Guillaume Delaunay, Chantal Latin e madame Thomaz, meu trabalho pôde ser levado a diante. E foi assim que ao longo deste período de estágio, acabei transcrevendo cerca de 234 páginas referentes aos registros de 36 pacientes acompanhados por Charcot e alguns de seus colegas de trabalho entre 1859 à 1891.

Desde os antecedentes “hereditários” e antecendentes “pessoais” podemos ver os rastros da histeria que Charcot percebeu no trabalho de investigação e tratamento realizados por ele. A presença relevante de humores marcados por “tristezas violentas”, que às vezes foram descritas por histórias de estados “moralmente” dolorosos, são concomitantes às manifestações de dores fulgurantes nos membros do corpo.

Mais ao final do período de estágio me encontrei com uma grande figura da psicanálise contemporânea aqui na França, e falando com ela, tive como resposta à pergunta que fiz sobre a relação de amor entre Freud e Charcot, e as perspectivas de ligação entre Neurociências e Psicanálise, que Charcot “é uma figura que ficou no passado”.

Apesar de escutar essa posição de uma psicanalista historiadora, acredito que o contato direto com este material me permitiu fazer uma leitura que transcende a história de amor de Freud e Charcot. Trata-se da relação entre a Neurologia e a Psicanálise tão em voga nos dias de hoje. A pergunta que versa sobre a relação entre histeria e diversas doenças neurológicas autoimunes não perdeu o seu valor.

Observando a cidade, pude ver uma massiva publicidade incitando recursos para a pesquisa com Esclerose Múltipla aqui na França (assim como no Brasil), o trabalho que pude realizar no prédio do Instituto do Cérebro e da Medula Espinhal, onde está situada a Bibliothèque Charcot, pode me mostrar que este incentivo está presente na atitude das pessoas com as quais eu pude trabalhar. A escuta de Freud permitiu que ele ultrapassasse seu mestre, Charcot pôde dizer algo ao pai da Psicanálise. Descobrir o que está por detrás da letra, do estilo de escrita, e da língua do pai da Neurologia ainda pode dizer muito, ao meu ver, aos pesquisadores do corpo e de seus sintomas.

Paris, 28 de janeiro de 2018.

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O corpo em festa: o que acontece com todo esse bolo?

Não existe festa boa sem bolo e bolo bom tem que ter cobertura.  Mais do que isso, tem que estar bonito aos olhos meus e dos outros. Mas eis que o bolo não cabe na forma. Culpa de quem colocou ele na forma. Foi ingênuo, desavisado, incapaz de calcular ou de lembrar de olhar a altura do bolo. Olhou só pra largura e achou que ia caber perfeitamente na vasilha. Não! Não posso atribuir a causa desse “erro” pra pobre pessoa que teve a boa intenção de colocar o bolo no melhor lugar que tinha para ser levado para os cantos do mundo.  Então, a culpa é da forma, quem deu essa forma, quem a fabricou?  Muito rasa, quem colocou o bolo dentro dela não podia prever que o melhor podia ficar colado na sua tampa. O bolo não vai ficar perfeito de novo, nem aos olhos de quem o fez nem dos outros. Não, a culpa não é da forma, nem de quem a fez, de quem a fabricou. Já sei, a atribuição de causalidade para isso foi quem fez o bolo, colocou fermento demais, colocou sua pitada subjetiva  e o bolo cresceu muito. Talvez tenha sido as condições de pressão e temperatura a que ele foi submetido. Tudo para o bolo entrar na festa e ser aquele desejado pelos outros. Mas que vergonha de estar todo desfigurado da imagem que deveria ter, vai ficar lá feio dentro da tampa com suas culpas. Não. Ele vai ser aberto, fatiado, compartilhado e comido. Alguns vão gostar, outros nem tanto, mas pra falar dos culpados, entra na roda desde a decisão de fazer um novo corpo, com sua carga genética, sua história de ser desejado, encaixado numa forma, de se apresentar e ser apresentado,  a química do fermento e dos outros ingredientes, a adequação da temperatura a que foi cozido, seu acondiciomamento, pra dizer porque na hora boa dele viver sua vida de bolo gostoso e bonito, ele se bagunça todo porque ele foi feito para que sua tampa seja aberta para mundo e seja revelado em sua única forma possível. Como um fio desencapado, desprotegido, como assim um bolo de festa sem cobertura? Desprovido de sua funcionalidade e da razão pela qual foi feito. É isso mesmo? Que nada. Por acaso, tudo isso que aconteceu. E não por acaso, pode se ter um grande motivo pra passar os dedos na tampa e apreciar a cobertura de um modo inusitado. Aiai, o que mais se pode dizer sobre a constituição do sintoma dos sujeitos com doença autoimune?

Elise Alves dos Santos.

Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB).

Goiânia, 22 de abril de 2016.

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Roda de capoeira

Para “sair jogo” na roda de capoeira é preciso tomar uma posição diferente, é preciso sair da repetição da ginga, é preciso ousar, fazer acontecer, surpreender aquele sujeito que está jogando com você, propondo novos movimentos para ver o que surge na brincadeira. É preciso construir um roteiro improvisado na cumplicidade com o colega.

Na roda se instaura uma confraternização de um lugar de contenção, de ligação, de transformação, de transferência, de resistência e de desistência, sobretudo, de luta do ser-conjunto. Para sustentar a possibilidade de recriar a capoeira de mestre Bimba, no chão goiano por ele escolhido para viver, se oferecem referências e apelidos para a aderência de uma grande diversidade de classes sociais a uma mesma cultura. Com essa integração afetiva é possível dançar investimentos imaginários que sustentem a realização de nossos projetos (projetar é fazer!).

Jogar capoeira para realizar um projeto de utilidade ou beleza não é tarefa fácil, pois estamos acostumados a seguir planos coreográficos e ideológicos já estabelecidos por mestres autoritários que não nos deram a chance de dançar conforme nossa música. O capoeirista, na boa malandragem, vai forjar essa chance.

Um dos momentos mais esperados na capoeira é o da roda, poder ‘vadiar’ sem o compromisso de repetir um movimento em determinado momento pré-estabelecido. Não tem nada melhor que filosofar sobre essa possibilidade instaurada pela capoeira. Contudo, grande pode ser o lamento por muitas das vezes não se conseguir no “vamos-ver” do jogo de fazer o que gostaríamos. Parece que ainda o projeto de fazer não foi incorporado mesmo depois daquela sequência tão repetida nos treinos.

Depois de aceitar nossos obstáculos pessoais na roda de capoeira (imitando a roda da vida), podemos tentar interpretar que a beleza não esteja somente na apresentação de movimentos bem executados e harmônicos com o companheiro de jogo. A coragem de se expor para jogar, poder confiar seu corpo e sua proteção a alguém com quem joga pode ser bonito simplesmente pelo enfrentamento às vulnerabilidades de ataques, que não pretendem em sua verdade se realizar, mas apenas de dar a chance de rir de nossas fraquezas, de nosso despreparo, nossa pouca agilidade para “pensar” um golpe ou um contra-golpe para o que os mais experimentados da roda podem nos trazer.

A capoeira pode ajudar na conquista de uma autocrítica, na instilação de esperança em conseguir fazer o que propomos, na mobilização subjetiva e objetiva para sair da intensa vulnerabilidade que estamos quando não nos enxergamos. O desejo de exercitar o respeito aos capoeiristas, com suas autoridades, forças, gingas e fraquezas, leva, sem dúvidas, a nossa brincadeira de roda brasileira, a ser um patrimônio da humanidade.

 

Elise Alves dos Santos,

bailarina”, aluna do mestre Tatu de capeira regional.

 

Goiânia, 20 de janeiro de 2016.

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Cabelo vai, cabelo vem. E eu fico feliz por isso.

Cortei meu cabelo recentemente. Passados dois meses ainda me estranho no espelho. Freud, em seu artigo “O estranho”, traduzido depois como “O inquietante” de 1919, afirmou que é raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigações estéticas, mesmo quando a estética é definida como teoria das qualidades de nosso sentir e não é limitada à teoria do belo. Mas vamos lá dizer que os psicanalistas também se inquietam. Eu já estava flertando com a ideia de uma nova imagem há algum tempo, mas senti-me ainda mais motivada para cortar os cabelos por razões solidárias.
Uma amiga em tratamento quimioterápico mobilizou (sem saber) a inciativa de alguns familiares e amigos mais próximos: as meninas cortando os cabelos e os meninos raspando-os. Nós contribuímos na campanha de voluntários para confecção de perucas com uma infinidade de fios, junto com várias outras adeptas que “radicalizaram” com cortes ousados em suas cabeças.
Depois de uma série de comentários de colegas, amigos, familiares, parentes e até desconhecidos, fico pensando como este ato de mudança no visual afeta cada um de nós em suas realidades. Freud, mesmo após a Primeira Guerra, já havia dito que “algo tem que ser acrescentado ao novo e não familiar, a fim de torná-lo inquietante”.
Minha amiga, a quem eu me solidarizei, retribuiu o carinho com uma visita alegre e bem-humorada. E eu fico feliz por isso. Este corte rendeu muitos fios, como disse, mas rende também algumas linhas de reflexão interessantes.
Acostumada com um visual tradicional – o qual me acompanhou por muitos anos – surpreendi-me com os elogios e parabéns pela atitude. Certamente me identifiquei com o modelo de longas madeixas clássicas (e ainda acho bonito como, provavelmente a maioria das mulheres) desde cedo. E acho que a experiência de ver a própria imagem de rapunzel duplicada no espelho, como se dia após dia, repetidamente, o “espelho, espelho meu” dissesse algo de minha eterna existência da qual eu me habituei a reconhecer, de meu perdurar onipotente.
Também me inquietei com manifestações opostas, em que eu percebi o desagrado ou espanto, freado por alguns adjetivos, sobre ser corajosa, revolucionária e ainda de estar irreconhecível. Chamou atenção uma expressão incomum: “Agora você tá suruca!”. Já tinha ouvido falar este nome, mas nunca para dizer sobre alguma atriz linda-maravilhosa que surucou o cabelo. Busquei o significado do dicionário para trazer a tona a significação de termo tão estranho. E “suruca” se tratava de algo que foi desabado, ruinado, afundado. E quando escutei o significado dado por regionalismos rurais, de que este era o termo para se referir às galinhas que tinham sido depenadas para o abate, confirmei que não era bem o elogio que queria ouvir.
Logo tratei – na brincadeira da conversa – de informar que eu não queria ser chamada assim, e que era preferível um elogio tradicional. Depois, lembrei-me de que não queria esperar muito do tradicional e amenizando minha demanda de amor, falando disso em minha análise pessoal, “decidi” me inquietar com outras coisas, ou de outra forma com os efeitos de meu acontecimento.
Alguns poucos homens de nossa cidade me apresentaram suas reações “em favor” ao meu corte: que me notaria numa festa, que eu estava mais sexy, e outras manifestações que agradariam a satisfação de suas fantasias. Ainda bem que meu marido se incluiu nesta categoria! Outros, que antes só passavam seu olhar por mim, literalmente me pararam para lamentar (hoje posso rir disso): “Nossa… agora vai demorar a crescer, não é?” em tom de profundo lamento. Outro, mais recriminativo e questionador: “Não, não faz isso não! Por que você cortou o cabelo?” ou ainda “Cadê seu cabelo?”.
Não se trata de julgar aqui as preferências estéticas e fantasias de cada um. Convido à crítica da resistência para o novo. Uma amiga muito querida hoje mesmo me mostrou que havia cortado o cabelo, bem curto como cortei, e me chamou de “amiga inspiradora”. E eu fico feliz por isso.
Penso que nossa cultura possa estar em transição. E isso afete cada vez mais nossos modos de nos apresentarmos. Tenho um irmão viajador que está sempre em busca de novas moradas. Em visita à última cidade onde morou, Berlim – conhecida como a capital criativa da Europa – vi cabelos de todos jeitos. Penteados despenteados, cabelos coloridos e multicoloridos em todas as idades. O padrão de Berlim é não ter um padrão. O que está na moda em Berlim? Acho que um fashionista diria: tudo! Uma guia turística brasileira, moradora de Berlim desde a época do muro, confirma minha teoria de que depois do nazismo, os alemães não aceitam a menor manifestação de violência, o que dirá de uma ditadura do pai da moda.
Embora aqui, em nossa vila ainda tenhamos uma raiz romântica da cultura colonial, subservientes aos padrões trazidos por nossos conquistadores, típico de quem espera o príncipe libertá-la do castelo, tenho visto mulheres desta época desapegadas de um cabelão assumirem a experiência da novidade, saindo de seus castelos e indo para a rua pedir uma experiência fantástica de corte daquilo que lhes pesa no cocuruto.
Acho bonito ver a força da indústria têxtil goiana mostrar em suas vitrines estilos diversos, cores variadas para uma mesma estação, como que assumindo que em nosso país não faz muito sentido delimitar rigidamente padrões para quatro estações nunca bem definidas. Estamos criando coragem para sermos diferentes na vida estética, ética e política, mas como custa ousar ser diferente.
Pagar o preço de autencidade pode ser mais em conta quando assumimos a experiência de mudança e nos tornamos autores de nossa história, descobridores de nosso território-corpo, dissolutores da resistência de complexos infantis inerentes à nossa pátria, e às nossas vidas particulares. Estou curtindo meu cabelo curtinho. Vou deixar o cabelo crescer de novo para ver qual imagem mais me agradará ou talvez aderir à moda berlinense de sempre ter uma mudança para enfrentar as ameaças fantasiosas ou reais de perda. Para isso, meus caros, vale muito a pena de pagar pela própria análise pessoal. Lembro de meu percurso iniciado há três anos atrás. E eu fico feliz por isso.
Por fim, tem um aspecto dos mais importantes que pretendo falar para finalizar este falatório. É a respeito do mais forte personagem do Antigo Testamento. O famoso Sansão, em sua lenda perde a força para enfrentar seus inimigos quando seus cabelos são cortados por sua amada Dalila. Diferente de Sansão, não precisamos enfrentar adversidades como se elas fossem leões e inimigos para serem mortos. E oposto, também pode ser verdadeiro, é cortando os cabelos que ganhamos força.
Quando nossos cabelos crescerem de novo, lentamente, talvez comecemos a perceber que ganhamos forças justamente nesse tempo mais contemporâneo que antigo, em que sabemos acolher os cortes que nos chegam. Sim, porque podemos escolher um novo corte de cabelo, mas às vezes não. O sentimento inquietante de vivenciar um novo acontecimento pode vir de uma angústia diante da impotência ou ainda de um desejo ou crença infantil de que podemos ter controle sobre nossas experiências.
Às vezes, como dizem os franceses em sua gramática, nós temos nossos cabelos cortados. Talvez reconhecendo nossas castrações, possamos nos tornar dignos dos acontecimentos em nossas vidas, cujo brilho e esplendor é o que damos sentido e o sentido que damos. Talvez seja preciso se solidarizar com suas próprias causas para ser capaz de se solidarizar com os outros (em) nós. Obrigada e, eu fico feliz por isso, mesmo com o mal-estar próprio de nossa civilização.

Elise Alves dos Santos.

Goiânia, 12 de dezembro de 2015.

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