homem em francês se pronuncia com h mudo homem em matogrossês É Homem com h Se corre ele pega, se fica ele come Valentia de cobra Serpentina penetrante Lançadas nas peles carnavalescas A pausa e o movimento Conjugados em ritmo O bicho inova Começa a dançar Toca a nota Abstrai o vazio Pisa no solo Se afunda no inferno Não teme o diabo Escuta Dionísio Vai ao seu encontro Levanta Pés no chão Alça voo Levita um instante Alcança o feminino Uma coisa lhe é revelada Ele não suporta Pois não tem base O apoio lhe falta L’être humain Carta humana Letra humana Alternando maiúsculos E minúsculos Se queima da faísca divina Está em Gaia Não é ser É ente Fica do-ente de ser homem E só Ela o abraça
Árvore Majestosa planta alta Do Jardim América Do Sul, do Centro-Oeste Do coração do Brasil Tem outra assim Nessa Goiânia? Vista do cômodo divã A agenda repleta De tempos preenchidos Incômodos falantes Sentidos de seiva Percorridos, corridos Através dos troncos e folhas Um corpo imenso Que busca direção Rumo ao sol e a chuva Porque a mãe-terra precisa Mesmo dos postos opostos Para fazer o sentido De existir Um vento mais forte Soprou agora pouco No final da última sessão
Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Esse texto é uma reflexão afastada no tempo de quando fui batida no trânsito. De começo, quis dizer que fora por um motociclista imprudente. Depois, ainda poucos momentos após a colisão, a experiência bateu forte para me fazer questões sobre o nexo causal entre o acidente e o mundo do trabalho de um outro modo e para além do discurso posto.
Falemos do discurso posto: a responsabilidade individualizada quando se trata de motociclistas é do sujeito – desculpe a expressão – “fodido e mal-pago”. E sim, sabemos que em nossas cidades brasileiras, é de “praxe” assistirmos os motoristas de motocicletas em particular fazerem entradas bruscas, “costuras” entre faixas contínuas, descontinuando de variadas formas o trajeto da segurança. Dirigirem com extrema rapidez, e aí soma-se a leveza do veículo e o peso da vontade de fazer a moto acelerar. Enfim, um modo que transgride leis e convenções de trânsito.
Explico o uso do linguajar informal, quase chulo, porque vale a pena entender porque é tão comum e ao mesmo tempo difícil falarmos dos fodidos quando existem dois lados tão distantes: o do “fodido” e o dos “fodões”. O termo é fortemente sexualizado e imprime a ideia, para estes últimos, daqueles que podem gozar, ainda que psicanaliticamente falando “gozar” implique outros significantes, chamo atenção aqui para o sentido de que os fodões são aqueles que podem gozar, usufruir com prazer, de suas condições, objetos e posições de poder.
Pode mais quem tem carro próprio, consegue pagar IPVA (imposto de propriedade de veículos automotores, uma sigla que a gente nem queria entender o nome porque pouco parece fazer sentido), troca a placa quando precisa, aciona seu motor turbo quando quer, consumindo mais combustível num toque leve dos pés no acelerador, se desloca com rapidez, passa na frente dos outros, dirige em primeiro lugar.
Digo assim, porque os “fodidos” são os que ficam submetidos aos fodões. No trânsito estamos todos “munidos” de veículos que potencializam os movimentos que precisamos/queremos fazer. Talvez esteja aí, nessa barra que separa a necessidade do desejo que toda essa discussão poderia se deter.
Na epígrafe do texto, cito Oswaldo Montenegro dizendo que conhece o medo de ir embora, o motociclista que bateu em mim, teve medo de ficar pois caso fosse o hospital conforme meu pedido ficaria sem realizar as entregas definidas para a tarde. A discussão foi presenciada por outro motociclista que se surpreendeu com o colega que negou minha oferta de prestar socorro. E assim, o batedor de metas e de carro, deu seu jeito de passar pelo acidente.
A realidade que este homem vive – emblema de toda uma categoria profissional -, provavelmente a mais repetida no trânsito de Goiânia, lembra mais a música de Milionário e José Rico, que diz que na longa estrada da vida “vou correndo e não posso parar na esperança de ser campeão alcançando o primeiro lugar”.
Inspirada em algumas passagens da obra de Freud (1895/1996; 1901/1996) penso nas disciplinas de saúde do trabalho, lembro de nossos programas de saúde da família. Embora Freud não trabalhasse no serviço público, por muitas vezes ele atendia pacientes empregados da grande “firma” B. & R. fazendo visitas profissionais tanto na residência dos funcionários como nos escritórios do prédio onde se localizava a empresa. Freud cita esse testemunho no texto sobre o esquecimento de impressões e conhecimentos.
Essa passagem de um caso diagnóstico duvidoso que Freud reconhece em sua prática, nos leva a refletir sobre elementos importantes para o estabelecimento do nexo causal esquecido no tratamento dos acidentados do trabalho no trânsito. Esquecemos (deixamos pra lá) o porque aceitamos desconhecer o por que pagamos determinados impostos, tal como o licenciamento anual dos veículos automotores. Os impostos que a classe que vive do trabalho não consegue pagar nem entender o porque deve pagar parece atrelada à renúncia ao seguro para Danos Pessoais por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT). A conta do de-ver cível do condutor de pagar seus impostos, não parece justa, ou melhor dizendo, pouco pagável para muitos, pois não se vê retorno ao se pensar numa relação custo-benefício quando se vive sob os piores modos de exploração do tempo e do trabalho humano.
Um acidente reativa os vividos anteriores, infantis e, às vezes, vivências muito precoces que emergem na clínica psicanalítica. Uma notificação de acidente implica também a suspeita de sofrimentos e até mesmo transtornos mentais relacionados ao trabalho. O acidente (e seus potenciais efeitos adoecedores e cumulativos) com motociclistas são fenômenos de repetição associados à condutas de risco, medidas adotadas para conseguir “dar conta” do trabalho. O seu jeito de dirigir pode dar uma forma específica à identidade de condutor, ou dito de outro modo, deforma a própria percepção levando a ver o trânsito e agir sobre ele para atender à ordem do patrão nosso de cada dia: “Consiga realizar as entregas”. Um super-Eu identificado com o discurso do “fodão”, mostra no trânsito como os motoristas revelam seus mecanismos de dominação mais sórdidos e impensados. As consequências aparecem tanto na deformação das identificações em curso, como na sucata metálica da moto amassada, e no corpo (a)batido do trabalhador precarizado em sua dupla valência, corporal e simbólica, não dissociáveis uma da outra (Aeschbacher, 2006).
Outro dia, vi o mesmo motoqueiro próximo ao local da batida, como Vital e sua moto, sem paralamas ou parachoques, seguia sem ouvir o alerta do pai sobre o perigo da motocicleta. Sobre duas rodas, apostava que conseguiria deformar o cronograma de entregas, vencendo os ponteiros do relógio, alcançando o primeiro lugar de algum lugar, garantindo a parca remuneração para cumprir seu dever de prover cuidados para a filha doente. Do ronco da moto só podia se ouvir o grande apetite mortífero de quem quer matar a fome de tentar dar uma guinada na vida, satisfazer a guina, dar conta das exigências da vida.
Referências
AESCHBACHER, Marie-Thèrèse. Les lésions corporelles d’origine somatique ou accidentelle à l’adolescence: une douleur en quête de sens. In: LAURU, Didier; LEMAIRE, Jean-Jacques.Enfances & PSY, Nº 32. Dossier Les Marques du corps. Paris: érès. 2006, pp. 16-22.
FREUD, Sigmund. O esquecimento de impressões e intenções. In: _____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VI. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1996.
Em 2022 escrevi sobre a importância do nome próprio do trabalhador1. Texto inspirado na conversa que tive com o professor Dr. Roberto Heloani no encontro que organizei em 2014 sobre assédio moral no trabalho na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, lembro dele iniciar sua palestra criticando o uso do termo “colaborador”. Hoje vou entrar um pouco mais na questão dos nomes usados como vocativo e tratamento do trabalhador.
É preciso prestar atenção nas palavras e técnicas que escolhemos, pois tanto umas quanto as outras “constituem um meio poderoso de transmitir valores, significados e atitudes”. O nome dado ao trabalhador precisa passar constantemente pelo escrutínio da reflexão e do pensamento crítico (Diniz, 2004). A proposta de escutar o que dizemos passa pelo reconhecimento dos pressupostos patriarcais e discriminatórios e o quanto eles podem ser usados para perpetuar papeis e estereótipos desvantajosos para o reconhecimento de quaisquer trabalhadores.
Seguindo a análise em um nível mais individual, reflitamos: na sociedade contemporânea é possível mudar de sexo, mudar de nome, acrescentar sobrenomes ou ainda manter os mesmos nomes mesmo que depois que seus corpos ou estados civis tenham se modificado. Nem sempre os documentos de identificação acompanham a materialização da realização do desejo de ter nova identidade. Por isso, a pergunta: “como você gosta de ser chamado ou de ser chamada?” é bem-vinda nas conversas de socialização dentro dos ambientes de trabalho.
Doutor e doutora: um exemplo para questionar o dizer de um título próprio
No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa o primeiro significado do verbete “doutor” é o seguinte: “1. Aquele que completou o doutorado” (Ferreira, 2010, p. 742). A par da consideração contemporânea da cultura brasileira, pactuada numa das maiores referências da língua portuguesa que é nosso Dicionário Aurélio, a defesa para que os advogados sejam chamados de doutores está num decreto imperial de 1º de agosto de 1825, importado e exarado pelo Chefe de Governo de Dom Pedro I, que deu origem à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que dispõe sobre o título (grau) de doutor para o Advogado. A questão é, se Dom Pedro “falou” no século XIX, “água parou” até o século XXI?
Hoje temos “doutores de verdade”, como muitos querem defender, ou seja, aqueles que fizeram doutorado em várias categorias profissionais. Negando a pertinência cultural referendada pelo Ministério da Educação, de certificar doutores ou ainda aqueles assim nomeados pela tradição, na contramão da valorização dos títulos próprios conquistados pelas(os) trabalhadoras(es), o Decreto N° 9.758, publicado em 11 de abril de 2019 proíbe, na Administração Pública Federal, o uso de formas de tratamento bastante conhecidas dos manuais de Redação Oficial. O ato normativo determina que se utilize exclusivamente a forma “senhor”/”senhora” nas comunicações orais ou escritas entre agentes públicos federais, como forma de modernizar e desburocratizar o uso de pronomes de tratamento. A mesma pergunta feita à pertinência de um conteúdo legal de outrora é feita agora, por um viés crítico, pela advogada Dra. Jael Sânera Sigales-Gonçalves2.
Jael atenta-se para o uso de pronome justamente porque, geralmente, essas palavras substituem nomes próprios ou substantivos comuns, que podem ser associados às pessoas do discurso – 1ª (eu, quem fala), 2ª (tu, aquele com quem se fala) e 3ª (ele, do que/qual se fala). Além disso, o decreto proíbe formas como “Vossa Excelência”, “respeitável” e “doutor”, fazendo pensar que bandeiras como “Doutor é quem tem doutorado” teriam entrado para o rol de prioridades legislativas da União Federal, mas a intenção não parece acontecer por aí. O blog de Linguística da Unicamp, assinado pela Dra. Jael, provoca a reflexão:
Parece simples olhar para essas regras de emprego dos pronomes de tratamento e empregá-los “adequadamente” nas diferentes situações de comunicação. Porém, os Manuais não explicam, por exemplo, por que o feirante chama o cliente de “doutor”, e não o contrário; por que o porteiro é “Seu José”, não “Senhor José”; por que toda patroa de empregada doméstica é “Dona Fulana”, não importa a idade. Também não explicam como e por que a subversão das regras de uso das formas de tratamento e o jogo com o “status social” produzida por cada pronome produzem o riso:
Fonte: Sigales-Gonçalves, 2024.
Essas situações jocosas nos dão indícios de que há algo do funcionamento da fala que escapa às tentativas de sua regulação. Por isso, é preciso ir além dos Manuais para compreender o que está em jogo na divisão entre quem é “senhor” e quem é “excelentíssimo”, que poderia ser chamado de doutor e não é. Geralmente, quando se fala em “políticas linguísticas”, se fala de escolhas conscientes sobre a língua na vida social que vão resultar em práticas de “planejamento linguístico”, ou seja, ações concretas em que o Estado coloca em prática suas escolhas sobre a comunicação. Manuais de Redação Oficial e normas jurídicas que buscam regular o uso da língua – como o Decreto n.° 9.094/2017 e o Decreto n.° 6.583/2008 – são exemplos desse planejamento linguístico.
No horizonte da discussão do uso do título de doutores por força da tradição secular para advogados ou médicos, o que merece mais atenção é que há décadas diversos profissionais têm se habilitado legalmente para o reconhecimento formal de seus doutoramentos, seja em planos de carreira ou fora deles. As reflexões devem ir além do legalismo e tradicionalismo e é preciso repensar o que fazer diante de certas “psicopatologias da vida cotidiana”, para tomar emprestado o título de uma obra freudiana.
Se num mesmo ambiente há um advogado experiente, seja na administração pública ou na iniciativa privada, o jovem que tem os mesmos títulos deve ser tratado tal qual o colega, pois a formalidade e padronização são dois atributos presentes nos princípios constitucionais brasileiros de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. No entanto, nem sempre é assim…
No Brasil, o doutorado é cursado em pelo menos quatro anos, isso após fazer um mestrado que dura pelo menos dois anos. Então, quando você passa a saber que alguém tem um doutorado, saiba que este brasileiro estudou em média o dobro de tempo que qualquer outro graduado em curso superior. O empenho nos estudos é característica individual, incentivada (ou não) pelas políticas educacionais do país, estado ou região.
Logo, seguindo esta via de raciocínio, não deveríamos mais nos referir aos médicos ou advogados como doutores? A resposta deve vir como exercício de um certo posicionamento ético. Há graduados mais jovens que entendem que não deveriam ser assim chamados, pois não fizeram o curso específico que lhe concederia este título. Por outro lado, ainda restam muitos que se comprazem deste modo de serem chamados, pois alguns “subordinados”3 ainda lhe conferem um lugar de destaque, de poder, fálico em última medida. Nada impede que, informalmente, com o devido respeito e consentimento, possamos dar apelidos ou nos referir aos colegas por doutores ainda que não possuam os títulos específicos, conferidos pelo Ministério da Educação.
No entanto, em momentos formais de apresentação do profissional em seu ambiente de trabalho, é mister que a apresentação curricular seja feita seguindo os princípios éticos amplamente divulgados nos variados Códigos de Ética que proíbem as categorias profissionais a divulgar e declarar possuir títulos acadêmicos que não possuam.
Antes de chamar qualquer graduado de doutor, pergunte-se, e o doutorado? Reconhecendo ou não o conteúdo abordado neste texto, atente-se ao direcionamento de sua expressão ao colega de trabalho que o responsabiliza daquilo que fala ou deixa de falar. Certifique-se se a sua liberdade está interferindo na imagem do outro, seja porque o diminui ou o menospreza. Esses cuidados são medidas de prevenção ao assédio moral no trabalho, pois o respeito e reconhecimento da trajetória de cada trabalhador cabe em qualquer ambiente de trabalho.
Trazer honra e homenagem para um colega que não possui o título e não mencionar outro que o possua é situação que não passa incólume a uma análise dos princípios de reconhecimento na carreira investida pelo(a) trabalhador(a). Seja no caso de você estar tendo dificuldades em se lembrar do nome de colegas de trabalho e se não se trata de amnésia, ou optar por termos que apaguem a sua singularidade, atente-se para o modo como se refere ou não se refere ao seu colega de trabalho.
Lembrando que após o vocativo ou aposto de doutor e doutora vem um nome próprio singular que identifica o(a) trabalhador(a). É ele (ela), quem viveu a longa e muitas vezes difícil experiência de trabalho de anos a fio em pós-graduações, é ele (ela) quem deve ser perguntado(a), antes de tudo como prefere ser chamado(a) por aquele que entra em seu ambiente de relacionamento, seja para pronunciá-lo na forma escrita ou falada. Esse é o pronome de tratamento adequado, o respeito à singularidade do percurso e identidade de cada um.
É Doutora e Mestre em Letras pela Universidade Católica de Pelotas, com estágio doutoral na Universidade de York, Reino Unido. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas e atua como professora em nível de graduação e pós-graduação stricto sensu na mesma instituição. Tem experiência de pesquisa, ensino e extensão na interface entre Linguística e Direito, especialmente em Direitos Humanos, Direito Linguístico e Políticas Linguísticas para a população migrante no Brasil. Lidera o Grupo de Pesquisa Língua, Direito, Estado e Sociedade – GELIDES/CNPq. Integra o ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes em São Paulo, vinculado à Faculdade de Direito da USP, onde atua como pesquisadora e advogada voluntária.
Consultar Zaleznik e De Vries (1981).
Referências:
DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.
HELOANI, José Roberto Montes. Encontro sobre Assédio Moral na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Auditório da TBC Cultura. Comunicação verbal. 2014.
BRASIL. Decreto Nº 9.758 de 11 de Abril de 2019. Casa Civil da Presidência da República. Dispõe sobre a forma de tratamento e de endereçamento nas comunicações com agentes públicos da administração pública federal. Diário Oficial da União de 11/04/2019, p. 5 Edição Extra.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Doutor. In: ____. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5 ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 742.
SIGALES-GONÇALVES, Jael Sânera. Doutor é quem tem doutorado: o decreto presidencial sobre as formas de tratamento – Parte I. #Linguística – Blogs de Ciência da Unicamp, 20 dez. 2019d. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/linguistica. Acesso em: 08/08/2024.
Peço licença para ler porque essas coisas de observação científica, elas podem desencadear muitas emoções e eu não quero desmanchar minha máscara-maquiagem teórica tão cedo. São tantos nomes, casos e histórias que deixo pra falar depois no um a um pra quem quiser ouvir. Senão eu vou ter que me virar numa insanidade de agradecimentos extensos que poucas palavras não dão conta. Em ordem alfabética, gente de Anápolis, Bélgica, Brasília, Balneário Camboriú, Canadá, Goiâaaaniaaaa, França, João Pessoa, Londres, Mineiros, Palmas, Portugal, Rio de Janeiro, Juíz de Fora, São Miguel do Gostoso. Os convites chegaram para muitos, nem todos puderam vir. Todos e todas, gente do meu coração.
Falei para alguns de vocês, queria que a festa fosse no dia do meu aniversário, dia 24 de abril, dia do jovem trabalhador, mas o livro não ia ser impresso a tempo, coisas dos tempos do trabalho. Desmarquei a data de abril e remarquei para hoje, dia 22 de junho. No dia 24 de abril fui então passar o primeiro dia da crise dos 40 na última casa do Freud. Parênteses: eu aceito um prêmio consolação pra quem me deu só um abraço pelo livro, fica devendo um abraço pelo aniversário.
Então lá na casa do Freud, fui contando mentalmente pra ele, que eu tive muitas perdas como todo ser humano, extremamente humano, que perdi o prêmio de melhor tese pra um colega da UnB que escreveu sobre a capoeira. Merecido. Discordei com esse colega numa conversa sobre psicanálise uma vez e ele cortou a corda das relações comigo. Meu prêmio, não sei se ele tem… eu tenho uma turma de amigos estudiosíssimos com quem posso falar e escutar um monte de assuntos e até discordar. Isso é que é prêmio. Não é?!
Então… sobre a ideia dessa festa. Loucura…
Durante um tempo me achei deficiente para enxergar o que era uma decisão louca de fazer uma festa dessas. O que conseguia ver era só uma desrazão econômica assumida do tipo que sai da lógica em que vivemos. Devia estar trocando de carro mas escolhi fazer a festa. Celes você lembra quando eu comprei meu primeiro e único carro até hoje, mostrando lá no estacionamento da UnB o brinquedinho novo que tinha comprado pra ir para Brasília. Isso já tem 10 anos!! Fui fazendo uma descrição desse cenário que me lembra a Salpêtrière para me ajudar a compreender alguns investimentos que cada um de vocês aqui é acionista. A loucura começa antes de pisar em Paris. Fui construindo a fantasia de estagiar no Salpêtrière onde Freud esteve e dessa fantasia consegui viver uma realidade.
O dia-a-dia de contato com a vida exumada dos manuscritos de Charcot fez parte de mim. Olhos irritados pela ação dos micro-organismos dos fragmentos dos papéis antigos, garganta comprometida, uma bola de coisas foi fazendo parte do ritual de ressuscitar palavras, decifradas, alcançadas, perdidas, cansadas e diria até, pedidas para aparecer. Família, amigos, colegas bibliotecários, e desconhecidos ajudaram-me, sabendo ou não, a dar luz possível para às revelações emergentes das letras, das imagens, dos pensamentos e discussões que iam nascendo.
A presença benfazeja faz bem, é redundante dizer. Mas digo com propriedade porque as ausências e a presença de pessoas em determinados lugares que conseguem ser poderosas em situações desastrosas, são adoecedoras. Breve lembrete da pandemia onde muito mais que o vírus nos fez adoecer. Em 2019 defendi o doutorado, mas ficar enfurnada em casa na quarentena interminável não me ajudou a escrever o livro. Que período tenso de adoecimento que a gente viveu. Só pra lembrar que a demora para concluir esse livro tem toda essa história que Charcot e Freud não poderiam imaginar mesmo depois da gripe espanhola. Se Charcot ajudou no tratamento de Joséphine, vimos também como as relações contemporâneas podem ser extremamente adoecedores ou curativas.
Alguém poderia me dizer, a noite é sua, mas assim como a tristeza ou alegria. Essa atmosfera que a gente está criando aqui vem de todos, então essa noite, só é possível porque estamos todos debaixo do mesmo céu de inverno que a gente aquece na proximidade que a gente faz acontecer aqui, esse preto firmamento combina bem com a luz de estrela que brilha em cada um vocês, aqui e agora. Essa festa é nossa. Encharcada do melhor de Charcot, que era um festeiro, cito Victor Hugo: A alegria não é somente alegre; é grande.
Estranho dizer, mas escolhi a festa aqui também por causa desse espaço. Ia ser difícil levar todos para Paris, e aqui que me lembra a arquitetura e a aventura de morar vizinha do Salpêtrière, de pesquisar no hospital onde Freud trabalhou. Arcos visíveis esses elementos que suportam o peso de toda uma estrutura (de um corpo com suas reentrâncias somáticas e psíquicas em extremos do não-saber que se faz conhecer).
Apareceu aí no painel uma foto minha que Alexandre tirou em frente a escultura de Pinel ao lado de um alienado da atualidade. Lembro bem da impressão que fiquei do jovem que parecia querer aparecer comigo no registro do momento atual, que queria capturar o passado. Olhos esbugalhados entre a timidez e a mostração. Assim estou aqui, agora, meio pinel com tanta coisa ainda pra elaborar, desenvolver, viver.
Outra loucura. Ia pedir para todos viessem fantasiados com a moda francesa do século XIX, mas me pareceu forçar uma camisa difícil de servir para as opções de nosso tempo. Resolvi me encharcar de nanquim noir, caneta tinteiro de escrita de Charcot pra gente bisbilhotar depois o que ele escreveu. Mas pra não falar deselegantemente no livro, chamei de pulsão epistemofílica. Rs E vocês, estão todos e todas, bonitos e bonitas com suas fantasias escolhidas para essa noite! Cheios de palavras escritas no contorno da aura de cada um, irrepetível, original.
Entrei na metáfora dos dossiês franceses que fiz descobrir e encomendei macarons cor de papel, com fita de tinta preta pra entregar de lembrança ao final. Os sabores são complexos (três sabores) Quem acertar ganha um doce! Complexos como os conteúdos que me propus pesquisar, e que tem sido pesquisados há tanto tempo e cada vez mais por mais gente comprometida.
A brincadeira de descobrir sabores não cobra resposta, o doce, recompensa pra quem acertar ou errar é garantido. Porque o mais importante é entrar na brincadeira do palpite baseado em experiência. Além da sobremesa francesa, ofereço também os brasileiríssimos docinhos de leite em pó (meu preferido) e brigadeiros clássicos também. Mais representações de folhas e tinta…
Já falei que é um prazer ter vocês aqui.
Também escolhi um cardápio de comida confortável com assinatura de chef e tudo. Ela poderia estar na cordon bleue, de Paris, de Londres, mas ela está aqui unindo nossos cordões coloridos, transformando meu desejo de oferecer – pelo menos por uma noite – o banquete numa festa que gostaríamos que fosse nossa rotina de proletários.
A noite é especial, a autora, leitora da própria fala, conseguiu pôr de algum jeito, seu jeito de tentar transmitir o que foi apreendendo… alegria imensa de compartilhar essas próximas horas com vcs.
Alguns de vocês estavam na festinha à fantasia que fiz em 2019 para comemorar o término do doutorado, pendurei folhas dos dossiês transcritos nas paredes e pilares para decoração. Hoje é festão, consegui coletar e unir as folhas soltas em um livro. Por hora, estou satisfeita e convido vocês para curtir os sons de diferentes estilos e épocas que nos povoam.
Meus votos são para que o corpo teórico, o corpo-psiquismo, o corpo-memória, o corpo seu, o meu e o nosso se embale nos extremos dos espaços que conseguimos habitar. Aproveitem a festa, senhoras e senhores ou profitez bien, monsieur et dames!
Agora se me permitem fazer um coisa meio brega, meio chique, talvez especial… vocês me permitem sem muitos julgamentos? (Ouvi algumas respostas « sim » que me foram suficientes para finalizar meu discurso).
Pra quem a gente ama, a gente promete o céu mesmo sabendo impossível entregar esse presente, então dou a vocês o que eu não tenho, ainda que por um minuto passageiro, recebam meu pedacinho de céu que ofereço a vcs ao som de Stromae que abre a nossa pista de dança! Manda ver Dj!
E o teto retrátil do salão se abre ao controle remoto do maître da Bella Eventos
Eles estavam todos vestidos em uniformes de brutalidade, eh! Quantos rios nós temos que atravessar? Antes de podermos falar com o chefe? (Burn’ and Lootin’, de Bob Marley & The Wailers)
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) publicou em sua rede social, no dia 20 de maio de 2024, um carrossel com imagens informativas sobre a diferença entre as síndromes “Burnout e Burnon”. A diferença essencial seria que, no Burnout, o esgotamento profissional é causado por estresse crônico no trabalho em contextos de baixa realização profissional, enquanto que no Burnon seria um acúmulo progressivo de estresse em “pessoas perfeccionistas e com disponibilidade excessiva para o trabalho”, em contextos de alta realização profissional. Curioso pensar que a demanda no mercado de trabalho por desempenhos extraordinários alude a um “defeito” ou a uma “característica” de perfeccionismo ou disponibilidade excessiva que podemos, no discurso, reconhecê-las como negativas nos processos seletivos para preenchimento de vagas. Mas tais características são justamente valorizadas pelos candidatos pois eles sabem que, no fundo, é isso que a empresa quer – dedicação máxima, qualidade ofertada na medida de um sintoma em que a perfeição pode até mesmo se transformar num extremo de sufixo “ismo”: “meu problema é o perfeccionismo”. Assim, produzimos subjetividades excessivamente disponíveis que entendem que essas mesmas características precisam estar presentes e serem desenvolvidas. Ainda que sejam socialmente reconhecidas como problemáticas, os trabalhadores parecem entender o discurso hipócrita que defende que as descrições patológicas seriam antes, uma vantagem competitiva. A expectativa presumida de que a divulgação dos impactos causados por tais síndromes pudessem servir de ação de educação em saúde do trabalhador, que pretende a prevenção e o enfrentamento do esgotamento, pode até ser louvável. No entanto, é preciso inverter a rota de direcionamento de atribuição da causalidade do esgotamento profissional. O que precisa de fato ser prevenido e enfrentado são as causas primeiras do esgotamento, que não estão, na maior parte das vezes, nas individualidades dos trabalhadores. Mais do que “promover um ambiente de trabalho equilibrado e oferecer suporte aos trabalhadores afetados pela rotina laboral”, é preciso questionar o que torna o contexto de trabalho tão desequilibrado e desigual. A notícia de que o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul recebeu 60 denúncias de comparecimento obrigatório ao trabalho durante a crise após as enchentes que atingiram o estado ilustra bem o conflito de interesses na luta de classes sociais. Assunto que parece querer ser afogado pelos que querem sobreviver à custa das desgraças alheias. O suporte aos trabalhadores precisa acontecer no âmbito coletivo, compreendendo que estamos produzindo condições de risco para o adoecimento. Assim, não é o caso das empresas/instituições devolverem o problema aos trabalhadores e afirmar que a prioridade é o “autocuidado”, como se cada um cuidando do próprio umbigo fosse curar uma ferida macrossocial. Estabelecer “limites saudáveis” envolve a concepção de saúde defendida por nossa sociedade e envolve sobretudo a condição que cada trabalhador tem de usufruir de sua própria liberdade de expressão, sem medo de receber retaliações ou de inclusive ser assediado até o ponto de ser demitido ou de ser forçado a pedir demissão. É óbvio que buscar orientação de profissionais de saúde é necessário, mas não associar o nexo causal do adoecimento com o trabalho e deixar de priorizar a prevenção, acaba por “tapar o sol com a peneira” na ideologia do self made man. O acúmulo de estresse crônico no burnout, por exemplo, “que não foi gerenciado com sucesso”, com base na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), atribui imediatamente o problema a uma questão de gerenciamento… Dessa forma ao reduzir a situação a uma questão de como administrar o problema, se apaga a discussão política, e a análise séria que deveríamos estar ocupados nas políticas de saúde do trabalhador e da trabalhadora. Os 130 possíveis sintomas diferentes do burnout, por exemplo, não podem ser considerados fundamentalmente causas da síndrome, as descrições nos manuais e questionários que existem sobre o tema são mais efeitos de efeitos. Com base em Lima (2021), chamaria esses sintomas de desdobramentos que acontecem no corpo-psiquismo do(a) trabalhador(a), descritos fenomenologicamente como: exaustão física e mental, despersonalização, negativismo, cinismo, problemas cardiovasculares, distúrbios do sono, depressão, ansiedade, redução da eficácia profissional… Junto com Assoun (2018), concordamos que não é que sejamos misoneístas no sentido de recusar o discurso novo, mas, fundamentalmente, a questão do burnout e do mais novo termo burnon não é nova, as nomenclaturas são uma falsa novidade. Antes dos alemães cunharem esse termo, o médico e psicanalista francês Christophe Dejours (2004) já estava investigando a psicodinâmica do trabalho para além da psicopatologia, como os trabalhadores continuam produzindo apesar dos péssimos contextos de trabalho. Estamos tapando o mal-estar na cultura com esses gadgets sociais. O gadget “Burnout” é um discurso social atual que comporta uma metáfora interessante, quer dizer, a destruição do sujeito pelo fogo. No entanto, ele é analisado apenas fenomenologicamente, seja como resultado do esgotamento e da incapacidade instalada do burnout, seja pela manutenção da capacidade de trabalho concomitante com os sintomas depressivos. Para considerar o esgotamento pela perspectiva da psicanálise é preciso como defende o psicanalista Christian Dunker (2015) propor a diagnóstica (sim, no feminino) do sujeito com a transversalidade diagnóstica entre disciplinas clínicas (médica, psicanalítica, psiquiátrica, psicológica); tanto a flutuação discursiva dos efeitos diagnósticos (jurídico, econômico, moral) como sua incidência no real das diferenças sociais (gênero, classe, sexualidade). Assim, é preciso reconstruir a forma de vida a partir de um escopo ético de uma racionalidade diagnóstica de uma maneira ampliada. O esgotamento de uma mulher negra e pobre, esgotada pelo trabalho é diferente do esgotamento de um homem branco e de classe social mais privilegiada. Os laços entre trabalho, linguagem e desejo precisam ser refeitos para se pensar a patologia que se exprime no sintoma, no mal-estar e no sofrimento – como uma patologia social. A função essencial na investigação do diagnóstico é importante para fins de pesquisa e planejamentos, mas o essencial no acompanhamento do sujeito é a sua narrativa, como ele se implica na construção de sua própria história, juntamente com a análise do contexto de trabalho em que ele está inserido. E as vozes que dizem que a saúde do trabalhador importa advém de lugares muito diferentes, de cuidado ou de exploração. Parafraseando Caetano Veloso, eu diria, “é preciso estar atento e forte, não temos que temer a morte” especialmente, de um modelo incendiário de produzir a vida.
Referências: ASSOUN, Paul-Laurent. A Antropologia Psicanalítica: uma chave para pensar o contemporâneo. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 21(3), 431-441, set. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p431.2. Entrevistado por Cristina Lindenmeyer. Transcrição e tradução: Elise Alves dos Santos e Vivian Ligeiro, 2018.
DEJOURS, Christophe. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Selma Lancman & Laerte I. Sznelman (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Brasília: Paralelo 15, 2004. 346 pp.
DUNKER, C.I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
LIMA, Estevam Vaz de. Burnout: a doença que não existe. 1ª ed. Curitiba: Appris, 2021, 159 p.
Goiânia, 22 de maio de 2024.
Dra. Elise Alves dos Santos.
*Texto aceito para publicação no Boletim Informativo de Saúde do Trabalhador do Estado de Goiás em agosto de 2024.
Quem me dera poder fazer uma poesia para falar da vida de alguém. O título remete a uma expressão amorosa que usamos quando uma pessoa chega na vida de outras para torná-la bem cuidada, tratada com carinho, atenção. Enfim, é uma dádiva da vida ser agraciado com um anjo que cai dos céus para estar conosco. Seu nome era Ângelo, mas seu apelido, era “anjinho”.
O Anjinho que vivia a melhor fase de sua vida, segundo seus amigos e familiares, e até minha percepção dos breves encontros que nos restaram de décadas de convivência enquanto vizinhos de moradia, nas conversas rápidas de elevador, mas nada superficiais, porque Anjinho, generoso que era, “dava o que tinha” no contato amoroso com todos com quem encontrava.
Mas diante da morte, irrepresentável e sem poesia que dê conta de aplacar o sofrimento, nos falta demais, faltam tantas palavras que me sinto convocada a trazer um monte delas, tentar colocar – não digo sentido, mas algum consolo, vontade de fazer justiça à sua vida. Enxurrada de “moções pulsionais”, eu escreveria para Freud se tivesse talento suficiente, aos modos de Lou-Andreas Salomé, e diria que essa expressão que especifica um estímulo interno determinado, tem na morte do semelhante a fonte mais produtiva, atualiza o sentir, o pensar, a pulsão em ato, essa coisa endógena que é a dor, a novela que se presta a mostrar descaradamente e detidamente sobre a dor é tão impactante que chega dói.
Uma psicóloga do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do ABC Paulista1 me envia a notícia de que encontraram o corpo dele. Como queríamos não ter tido essa notícia: da agonia do desaparecimento, da esperança de sobrevida mesclada com o desespero da falta de respostas.
No mesmo dia, pela manhã, eu contava para alguns amigos sobre o ocorrido, e eu mesma havia dito (consolo para mim mesma, frases reiteradamente repetidas que tentam trazer algum conforto ou compensação pela morte): “Morreu fazendo o que gostava”. Que bom que fazer o que gostava foi possível.
É isso que pudemos ver em seu velório. A maior sala do cemitério Jardim das Palmeiras repleta de coroa de flores – eu contei 30, porque nessas horas acho que queria objetivar quantas homenagens estavam em curso, e quantas serão insuficientes para dizer o quanto sua vida era preciosa.
Anjinho se encontrou na profissão que o permitia voar. A mágica que nos envolve a todos desde antes de Santos Dumont, nosso desejo de liberdade, de realizar a loucura de ter braços voadores que nos permitem movimentar nos espaços onde nossas pernas jamais conseguiriam ir. Querer falar de um jeito bonito, não me faz ser menos envolvida com a técnica. Ele deveria ter tido a chance de continuar alçando voos.
Sei que está muito cedo para os enlutados mais próximos, mas não é preciso ler A negação da Morte de Ernest Becker para dizer que o discurso de resignação aparece muito rapidamente para os crentes de que um ser maior assim o quis. Tentar tampar o buraco enorme que a falta de Anjinho vai fazer é muito compreensível e socialmente aceito. E todas as manifestações de fé devem ser aceitas, incluindo a fé na ciência.
E é por isso – meus amigos do Edifício Itaipu, com tive a grata experiência de partilhar toda adolescência – que convido ao trabalho do luto, que mais do que percorrer as fases estabelecidas por Elizabeth Klüber-Ross (algumas etapas acontecem essencialmente em ciclos), deve sustentar além da aceitação mas (também) a negação da morte, pois os riscos “inerentes” ao trabalho de voar precisam ser melhor observados.
Finalizo, aquilo que pretendia ser uma condolência, como também uma incitação à fase de revolta, não somente ao que o choro, e tantas outras modificações orgânicas – inclusive o retorno ao inorgânico – podem causar. A ideia de re-volta, de voltar a dar a volta, percorrer novamente o caminho do estranhamento (o que aconteceu realmente?, o que poderia de fato ter sido evitado?, por que?). A investigação de um acidente de trabalho fatal passa por uma demanda.
Não! Não, está tudo bem. Precisamos reconhecer coletivamente que embora o tempo possa aplacar o extremo sofrimento, ele deixa marcas indeléveis, algumas tão inconscientes e poderosas que jamais poderemos imaginar. Deixemos que nossas moções pulsionais nos mobilizem para buscar outros caminhos para a segurança dos trabalhadores perdidos nos ares, nas matas densas, no escuro das noites sem estrelas.
O Anjinho que caiu dos céus não pode mais estar conosco como antes. Que sua presença em memória seja resgatada. Nesse “Abril Verde”2, a notificação deste acidente de trabalho fatal, desta tragédia, deve ser, sem dúvida, investigada. Fica para nossa herança acompanhar as ações reclamadas para garantir a continuidade da vida de trabalhadores do céu – que não deveriam literalmente ter de dar suas vidas à profissão – eles, precisam poder voltar à terra.
Eliane Pintor já nos agraciou com sua presença no Seminário sobre Saúde Mental no Trabalho, que pude organizar em nome do CEREST Goiás em 2023, com sua vinda patrocinada pelo Ministério Público do Trabalho em Goiás.
Abril Verde é uma campanha de conscientização realizada durante todo o mês de abril e que busca chamar a atenção para a importância da prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.
Quando fui professora de Comportamento Organizacional em uma pós-graduação em Pedagogia Empresarial, utilizei o livro de Psicologia Social como referência de base para a disciplina. Revendo o material, me chamou atenção as contribuições da Psicologia Ambiental como campo de investigação e estudos sobre espaço pessoal, comportamento territorial e relações com o meio ambiente compartilhado. As ideias dos autores sobre a aplicação da psicologia em áreas como o Meio Ambiente e o Direito me reportou diretamente ao ambiente de trabalho. Eles pareciam descrever a situação de trabalho vivenciada no ato mesmo da leitura. No serviço público e na maioria dos ambientes de trabalho, regra geral, os espaços são restritos e/ou compartilhados, mas não necessariamente há cuidado com o barulho. A questão da atitude em relação ao barulho pode ser sublinhada nos estudos de Cohen (1986), apud Rodrigues, Assmar e Jablonski (2000, p. 415) que mostram como “o barulho das cidades danifica tanto a psique quanto os tímpanos”. Trata-se de uma sobrecarga sensorial, de vocativos verbais e desabafos ruidosos, que repetem estimulações bombardeadas entre colegas de trabalho1.
Além da própria voz que busca a todo custo se externar em quaisquer possibilidades e ambientes, existem ainda outros sons. Músicas, palestras, conversas vindas de aparelhos eletrônicos de comunicação, alarmes, mensagens sonoras, alvoroços barulhentos de vídeos e áudios compartilhados, e nada disso no modo silencioso ou com uso de fones de ouvido. Um estresse reiteradamente repetido que exige da capacidade de processamento de um excesso de excitações. O que pode ser, psicanaliticamente falando, bem traumático e provocar, em longo prazo, uma exaustão emocional.
Os aparelhos pessoais de comunicação facilitam nosso trabalho (ainda que não custeados pelo empregador na maioria das vezes) mas quando utilizados sem fones de ouvido, ou fora de espaços reservados, seja em ligações particulares atendidas em pleno posto de trabalho ou conversas entre colegas, acionam os perigos da superestimulação. A publicização da vida particular sem questionamento desconsidera a presença do outro ao seu redor.
O trabalhador acaba se comportando de forma a não se importar com a disponibilidade do ouvido alheio, sem o menor constrangimento em agir exclusivamente conforme o próprio interesse (na maior parte das vezes por não estar em consciência do feito, portanto), sem saber se o que está falando pode interessar ou atrapalhar quem está próximo. O barulho nos torna menos sociáveis, agrava problemas mentais e estimula a agressividade, segundo o autor supracitado e segundo os relatos de experiências que estamos acostumadas a ouvir na clínica do trabalho que nos chega no consultório da clínica psicológica e psicanalítica.
O agravo de saúde do trabalhador “Perda Auditiva Induzida por Ruído” (PAIR) apresenta, em seu protocolo, efeitos não-auditivos da exposição ao ruído. Dentre eles, transtornos comportamentais ou distúrbios psicológicos diversos como nervosismo, irritabilidade, ansiedade. O corpo-psiquismo – embora tenha manifestações diversas biopsicossociais – é afetado pela soma de ruído e pode estar associado a uma maior incidência de dores de cabeça, náusea, bem como transtornos da comunicação, neurológicos, vestibulares, alterações gastrointestinais, do sono, da visão, do sistema circulatório, da visão, e até mesmo impotência sexual (Rodrigues, Assmar e Jablonski, 2000 e Brasil, 2006).
Um outro agravante para a saúde mental refere-se a maneira como nós sentimos o ruído, uma vez que a capacidade de sentir enquanto reação à percepção dos decibéis depende tanto do ruído em si, quanto de nossas atitudes em relação a ele. A sensibilidade aos ruídos é aumentada quando o trabalhador entra numa fase de sobretrabalho, o que aumenta sua irritabilidade (Silva, 2011).
Afinal, o barulho é um termo psicológico aos sons que julgamos desagradáveis: uma música de heavy metal pode ser fonte de indescritíveis prazeres para uns e de poderosa tortura para outros. No ambiente de trabalho, as conversas em tom alto de voz, característica quase que considerada latino-americana, nos remete a uma análise de fatores subjetivos que incidem sobre a interpretação ou atribuição que damos ao grau de desconforto percebido com o barulho.
Há uma cultura do falar mais alto que pode indicar a vontade literal de falar mais alto que o outro, se fazer ouvido pela força do som emitida pelo aparelho fonoaudiológico. Ter voz reconhecida pelo outro (seu conteúdo) é outra coisa. Assim, quando é possível algum tratamento em relação ao barulho, utilização de fones de ouvido que cancelem em certa medida o ruído, a sensação de controle sobre o fator de risco2 à saúde aumenta. Quando podemos analisar qual situação está nos incomodando e ela pode ser reconhecida, a referida sensação pode atenuar o incômodo do barulho indesejável pelas intervenções que daí podem surgir.
Os autores da Psicologia Social nos dão um exemplo profícuo para pensar a interpretação como recurso para propiciar elaboração da sensação de ruído: embora caminhões de carga pesada sejam mais barulhentos que motocicletas, tendemos a nos queixar mais destas últimas, talvez por acreditarmos aos primeiros um serviço de utilidade pública. O princípio de fazer sobrepujar o interesse do público sobre o individual nos permite realçar nossa percepção de justiça social. Como dissemos para nós mesmos: “é por uma causa nobre” ou justificável ou ainda, mais compreensível.
Fica o alerta para o barulho causa determinante, contributiva ou latente para o desencadeamento dos efeitos danosos que citamos aqui. A consideração dos barulhos contínuos enquanto fator de risco vai além do prejuízo aos tímpanos em função dos decibéis “a mais”. Nossa saúde psíquica também está em jogo. Assim, a investigação dos transtornos mentais relacionados ao trabalho contribuem em sua definição de caso3 (Brasil, 2019) para investigar a PAIR. No trabalho de notificação compulsória dos agravos de saúde do trabalhador (Goiás, 2006) os sintomas devem ser escutados pelos profissionais de saúde dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador e toda Rede de Atenção Psicossocial. Essa escuta permite que seja dada a devida atenção aos fatores corriqueiros como o ruído, o barulho constante como um agravo à condição de saúde psíquica e que podem estar associados à rotina de vida dos(as) trabalhadores(as).
Às vezes, pouco se pode fazer com “o leite derramado”, estamos limpando o chão, usando do distanciamento emocional e cultivo da insensibilidade como formas de defesa contra as demandas excessivas características do meio ambiente de trabalho (Rodrigues, Assmar e Jablonski, 2000). Contudo, é preciso levar em conta a experiência de Bernardino Ramazzini (Santos e cols. 2018, In: Goiás, 2018), desde o século XVII nos dizendo que “é melhor prevenir que remediar”. Baixar o tom da voz para elevar o nível de cuidado.
Notas:
*Texto escrito para o Boletim de Saúde do Trabalhador da Gerência de Vigilância Ambiental e Saúde do Trabalhador.
1 Aqui caberia uma outra discussão sobre o espaço de fala, de escuta, de discussão e de valorização do trabalhador, que na sua falta, pode muitas das vezes se transformar em voz que não quer a todo custo se calar.
2 Considera-se fatores de risco aqueles decorrentes da exposição aos agentes presentes no ambiente de trabalho, que em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador (Goiás, 2009).
3 Definição de caso de Transtornos mentais relacionados ao trabalho: Todo caso de sofrimento emocional em suas diversas formas de manifestação tais como: choro fácil, tristeza, medo excessivo, doenças psicossomáticas, agitação, irritação, nervosismo, ansiedade, taquicardia, sudorese, insegurança, entre outros sintomas que podem indicar o desenvolvimento ou agravo de transtornos mentais utilizando os CID – 10: Transtornos mentais e comportamentais (F00 a F99), Alcoolismo (Y90 e 55 [Digite texto] DDT-TMRT Y91), Síndrome de Burnout (Z73.0), Sintomas e sinais relativos à cognição, à percepção, ao estado emocional e ao comportamento (R40 a R46), Pessoas com riscos potenciais à saúde relacionados com circunstâncias socioeconômicas e psicossociais (Z55 a Z65), Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96) e Lesão autoprovocada intencionalmente (X60 a X84), os quais têm como elementos causais fatores de risco relacionados ao trabalho, sejam resultantes da sua organização e gestão ou por exposição a determinados agentes tóxicos (Brasil, 2019).
Referências:
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Perda Auditiva induzida por Ruído (Pair). Saúde do Trabalhador Protocolos de Complexidade Diferenciada. Volume 5. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Brasília: DF, 2006, pp. 40.
BRASIL.. Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública. Nota Informativa Nº 94/2019-DSASTE/SVS/MS. Orientação sobre as novas definições dos agravos e doenças relacionados ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Brasília, 2019.
GOIÁS. Decreto Nº 6.906, de 30 de abril de 2009. Regulamenta a competência da Secretaria de Estado da Saúde quanto à saúde do trabalhador. Gabinete Civil da Governadoria. Governo do Estado. Portaria Nº 1128 de 28 de dezembro de 2018. Aprova as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas para Transtornos Mentais relacionados ao Trabalho. Diário Oficial do Estado de Goiás, Goiânia, quarta-feira, 02 de janeiro de 2019, Ano 182 – Diário Oficial/GO N° 22.963 p. 23.
GOIÁS. Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Portaria Nº 34 de 9 de março de 2006. Torna os agravos de saúde do trabalhador de notificação compulsória no Estado de Goiás. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/component/content/article/337-suvisa/18483-legislacoes-estadua is-sa ude-do-trabalhador?Itemid=101 Acesso em: 17 de jan. de 2024.
RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Algumas áreas de aplicação da psicologia social. In: RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Psicologia Social. 19 ed. reformulada. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 395-419.
SILVA, Edith Seligmann. Psicopatologia da recessão e do desemprego. In: SILVA, Edith Seligmann. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez Editora, 2011, pp. 401-457.
O inconsciente é um conceito que já encontramos em autores clássicos como Spinoza, Nietzsche, Kant e outros. Mas, Sigmund Freud foi o responsável pelo fato desta descoberta, baseada em um corpo de experiências clínicas e estudos teóricos, que mostram que tal descoberta foi uma das mais importantes e revolucionárias aos profissionais que estão seriamente comprometidos com a ciência do homem.
Erick Fromm (1977), no seu texto Consciência e sociedade industrial, nos lembra que Freud descobriu em detalhes que podemos ter emoções, ansiedade, temor, tensão das quais não temos conhecimento e que sem dúvida existem no nosso sistema fisiológico e mental. Freud tinha razão antes e nos ajuda agora a entender como a angústia, a falta de identidade, a apatia e a insegurança no mundo contemporâneo são objetos de repressão nos (nas) trabalhadores(as).
Podemos dizer que a saúde mental está, na maior parte das vezes, no porão da casa de cuidados com a saúde, como se ela fosse guardada enquanto projeto de política e intervenção. Embora tenhamos várias possibilidades de análise para essa questão, chamamos atenção para certas classes de tomadores de decisões (pertencentes a determinadas classes sociais, obviamente) que tentam impedir que certos pensamentos ou propostas de vida no trabalho cheguem ao nosso conhecimento e que permaneçam na inconsciência.
A comparação do psicanalista nos permite dizer que aquilo que está inconsciente deve (no porão) ascender ao primeiro andar da consciência, ou seja, trabalhamos para que possamos ter conhecimento (ainda que limitado) sobre aquilo que nos faz, em última instância, viver ou morrer.
A psicanálise tem nos mostrado que o principal motivo de algumas repressões, recusas ou renúncias no mundo do trabalho é de caráter afetivo. A história engendrou nos homens e cada vez mais nas mulheres também, o medo de perder condições de privilégio, de se separar de propriedades e recursos acumulados, dos assentos de poder e claro, temores de nem sequer ser incluído na sociedade de consumo, mercado e espetáculo em que vivemos na contemporaneidade.
Se por um lado, temos esses riscos encobertos pelo modo de produzir a vida, por outro lado, temos os riscos iminentes gerados pela fome, pobreza, vergonha e precarização generalizada das condições de produzir e manter a vida enquanto trabalhadores. Desde cedo, a família superadaptada à lógica de exploração transfere a cultura da ameaça às suas crianças, treinadas desde cedo para serem na idade adulta, trabalhadores que não fracassem dentro de uma sociedade perversa. Sociedade neoliberal, esta do cansaço constante, demasiadamente rígida e impostora que não propicia sequer tempo para sonhar.
Cada sociedade cria uma forma própria de repressão, de “inconsciência social” (Fromm, 1977, p. 130) necessária ao seu funcionamento. Esse “mundo velho de guerras” tem um esquema pré-fabricado que determina qual parte do conteúdo se fará consciente e qual parte permanecerá inconsciente. Assim, muitas práticas psicológicas (com alívio percebemos que tem sido vigiadas e denunciadas por meio de notas técnicas pelos conselhos profissionais) defendem ações irracionais e pouco críticas para enfrentar condições enlouquecedoras de vida no mundo. Tais práticas vão proliferando consensos que transformam o imoral em moral, o irracional em racional, invertendo a luta pelas transformações pela dignidade dos pactos sociais civilizatórios, pela saúde, pela vida…
Nesse sentido, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Estado de Goiás (CEREST Goiás), a partir do trabalho de suas psicólogas[1], tem trabalhado numa perspectiva de vigilância epistemológica para oferecer e divulgar materiais que auxiliem na promoção responsável da saúde mental dos trabalhadores. São exemplos destes materiais as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas para Transtornos Mentais e a Nota Técnica que estabelece medidas de prevenção, enfrentamento e tratamento para o assédio moral no Estado de Goiás[2].
A saúde mental do trabalhador e da trabalhadora (SMTT) enquanto política pública ainda ocupa um lugar marginal muitas vezes, que não possui visibilidade e investimento. Estamos então em condição de pouca visão, às vezes cegueira, ou ainda, estamos inconscientes da função humana de buscar conhecer, observar o que existe “dentro e fora” dos nossos processos de saúde e adoecimento.
Em consonância à Política Estadual de Atenção, cuidados e proteção da Saúde Mental do Estado de Goiás (Lei Nº 21.292, de 6 de abril de 2022) o I Seminário sobre saúde mental do trabalhador e da trabalhadora: reflexões sobre a prática clínico-institucional, realizado pelo CEREST Goiás em novembro de 2023, cumpriu justamente o objetivo do art. 3º, inciso I: incentivar a realização de (…) seminários com educadores e especialistas em saúde mental, que esclareçam a questão da violência psicológica, saúde emocional, adoecimento mental e cuidados.
O homem é livre no sonho e podemos afirmar, com base em Fromm (1977) que este é o único estado em que a liberdade humana se estabelece de forma praticamente completa. Quem é impedido de sonhar, pode apresentar sintomas de perturbações mentais. Em nome da saúde mental, faço um elogio aos sonhos de quem trabalha.
A homenagem não é para reforçar uma ideia de algo utópico, distante ou de “outro mundo” de processos primários[3], mas sim de realçar o sonho como produção inconsciente que nos revela o desejo de alavancar melhores condições de vida na saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras (SMTT). Assim, o sonho é um trabalho do psiquismo que deve ser ouvido, interpretado, pois é difícil obter conhecimento de algo que não se designe com as palavras. É com a voz dada à linguagem que abrimos terreno para o processo secundário, vigilantes ao que ameaça os projetos e intervenções de cuidado significativos para a vida.
E como o inconsciente pode chegar a ser consciente? Fromm (1977) elabora uma resposta: quando desaparecer o conflito básico entre os interesses de uma sociedade e os de cada indivíduo dessa sociedade. Se isso ocorresse, a sociedade não teria que deformar, ameaçar, nem “lavar cérebros”, tampouco seria necessário bloquear a realidade para que ela não fosse percebida por nossa mente consciente.
Referências:
FROMM, Erich. Consciência e sociedade industrial. In: FORACCHI, Marialice Mencarini; MARTINS, José de Souza (org.). Sociologia e Sociedade: Leituras de Introdução à Sociologia. 1. ed. LTC, 1977, p. 126-134.
GOIAS. Lei Nº 21.292, de 6 de abril de 2022. Institui a Política Estadual de Atenção, Cuidados e Proteção da Saúde Mental. Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br /api/v2/pesquisa/legislacoes/105292/pdf#:~:text=ABRIL%20DE%202022-,Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Estadual%20de%20Aten%C3%A7%C3%A3o%2C%20Cuidados%20e%20Prote%C3%A7%C3%A3o%20da,Art. Acesso em:10 de jan de 2024.
[1] A autora deste texto e a psicóloga do CEREST Goiás Ana Flávia Coutinho.
[3] Na obra freudiana denomina-se “processo primário” o que se dá na primeira infância ou no sonho, onde isoladas dos estímulos externos ficamos, de certa forma, livres da necessidade de enfrentar a realidade. Enquanto que “processo secundário” é a característica da vida normal de vigília, cuja função sócio-biológica essencial é cuidar da sobrevivência.