Ensaios

O (não) saber sobre os desejos de viajar: uma leitura psicanalítica de fragmentos de dois casos atendidos por Charcot

A afirmação freudiana acerca do trabalho de Charcot de que a “hereditariedade nervosa” seria a única causa verdadeira e indispensável da teoria etiológica das afecções neuróticas, não corresponde ao que Charcot registrou enquanto “antecedentes hereditários” ou “temperamento”. A hereditariedade, todavia, era para o mestre de Freud uma categoria de investigação bem mais ampliada do que o jovem Freud pôde contar, ao criticar o mestre (Freud, 1896/1996; 1896/2023). O médico pesquisador do Salpêtrière já dava sinais de compreender a hereditariedade como o Freud (1939) maduro ao fim de sua obra, podendo incluir não apenas o que o sujeito experimentou, mas também traços de memória das experiências das gerações anteriores, ampliando significativamente a extensão da importância da herança arcaica1.

Embora eu não tenha localizado uma definição explícita do termo “hereditariedade” feita por Charcot, com a leitura dos dossiês, em especial dos jovens James Lévy e Sioen, fica clara a ideia de hereditariedade como maior que o adjetivo que a segue: “nervosa” (de nervos, ou células nervosas do sistema nervoso) de transmissão estritamente biológica, de informações genéticas herdadas pela via da reprodução humana2

A esclerose múltipla (EM) doença neurológica pesquisada por Charcot juntamente com a histeria, aponta uma etiologia que combina predisposição genética e fatores ambientais. Buscando entender os desejos de viajar dos jovens James Lévy e Sioen, ambos diagnosticados com EM, proponho articular a leitura dos casos com as contribuições da psicanálise, considerado os estudos da neurologia e da psicologia. 

Os casos que seguem ajudam a ilustrar como Charcot ensinou a Freud o que mais tarde ele iria sistematizar em teoria e na observação dos casos clínicos. Apesar da falta de créditos à Charcot cometida por Freud (Lepastier, 2004), a interlocução da psicanálise com a medicina segue necessária. 

James Lévy e Sioen

Ao investigar os “antecedentes hereditários”, termo quase sempre abreviado com as letras A. H. em seus registros, Charcot inicia o dossiê de James Lévy, que tinha 29 anos na época. O avô, o pai e o tio dele eram judeus3, sendo o tio, artista da pintura. A mãe era nervosa, mas não tinha crises, nem antecedentes semitas4. A história de James Lévy é marcada por um nome de família derivado de ancestrais judaicos. Charcot aparentemente interessado pela herança cultural, escreve no campo “temperamento” do dossiê: “originário de Genebra”. 

O jovem suíço aos 16 anos, abandonou furtivamente a casa de seus pais. Fez viagens para a América do Sul até os 20 anos. Durante sua estadia na República da Argentina5, ele teve dois ou três acessos de febre. Com 20 anos ele voltou à França bien portant (“bem de saúde”) e foi “bem se portando” que, sendo contador, foi empregado em um banco durante seis ou sete meses.  Aparentemente deixando de se com-portar, as “vontades de viajar” o retomam e ele se engaja na Legião Estrangeira6

Nos cinco anos que esteve no sul oranês7, aos 25 anos, acampava frequentemente. No penúltimo ano de serviço militar teve várias repetições de febres intermitentes. No final de 1885, na sequência da fase de trabalho no serviço militar em que ocorreram acessos de febre começou a apresentar diplopia (visão dupla), que persistiu por dois anos. No fim de agosto desse ano começou a ter rigidez e fraqueza das pernas, o que afetou sua marcha. 

O fim do registro do caso de James Lévy coincide com uma escrita sem desfecho. Charcot conclui descrevendo os sintomas de esclerose múltipla do “estado atual”, tais como paraplegia espasmódica, com marcha titubeante, contratura da perna direita maior que a esquerda, formigamento nos membros, paresia facial do lado esquerdo, hemiespasmo glossolabial do lado direito, língua desviada à esquerda, fala lenta e embaraçada, nistagmo etc. Em nota posterior, Charcot realçou dentre alguns pontos que Lévy era semita de origem “convertido, não sabemos porquê”. 

É curioso que embora os tremores da mão fossem leves, o jovem não pôde mais tocar piano, a expressão artística é suprimida após os sintomas de EM surgidos no período em que trabalhou no serviço militar. Ao final de 1889 sem mais registros, imagino que o jovem provavelmente, abandonou o acompanhamento médico.

O caso de Sioen, registrado por Charcot, também atravessa a temática da fuga, do desejo de viajar. Este doente de 24 anos foi avaliado em 25 de fevereiro de 1888, referido apenas por seu nome de família. Os breves escritos de Charcot sobre os antecedentes hereditários de Sioen remetem à sua “mãe um pouco viva, mas não histérica” e ao seu pai saudável, não tendo, portanto, “pais alienados”. Os antecedentes pessoais de Sioen foram registrados na forma de uma historieta. Com 14 anos, estando no colégio da Argélia, fugiu para Marselha8. Seu pai furioso o embarca como espuma9 a bordo de um três mastros americano que viaja Inglaterra-Nova Iorque e retorna à Argélia. Seu pai o recebe friamente e o envia à escola agrícola no departamento de Isère11 quando tinha 16 anos. Algum tempo depois disso, ele entra na Escola de Agricultura de Montpellier12, de onde sai diplomado.

Sioen é desestimado por seu pai, que com fúria aplica um castigo de colocá-lo em viagens marítimas intercontinentais. E no retorno, após aproximadamente dois anos, o recebe friamente. A partir desse momento, ele é “retomado pela vontade de viajar”. Ele volta para Nova York. Lá ele se torna miserável – faltava tudo. Foi obrigado a “figurar” em um teatro para conseguir pão. Parte para o Panamá – lá durante sua estadia que durou oito meses ele teve numerosos acessos de febre intermitente.

De volta para a França, ele ainda teve alguns acessos de febre a bordo do barco. Em sua chegada na França ele tinha 20 anos; quando deixou de ter seus acessos de febre intermitente, ele apresentou os primeiros sintomas de sua afecção atual. É quando as vertigens acalmam que ele “entra em desgostos”. Durante os exercícios a pé, seus superiores militares reprovaram-no por não andar direito, por fazer ziguezagues. 

Charcot anotou: “Excesso de mulheres – de tabaco – de café”, fazendo referência às características de excessividade presentes em Sioen. Charcot anota que as ereções do jovem eram raras, “inutilizáveis”. Os reflexos cremasterianos eram abolidos durante o exame com o doente em vigília, mas durante o sono a polução acontecia. Neste ponto, observamos Charcot atento às manifestações corporais para além da vigília e consciência. Sioen passa uma segunda temporada na Argélia, onde então assume uma marcha claramente titubeante. Na entrada no hospital de Oran apresentou vertigens, titubeação e rigidez nas pernas e fora enviado ao hospital militar de Bordeaux três meses depois (novembro de 1887). 

Em 25 de dezembro teve problemas na visão e via como “através de um nevoeiro”. Em 27 de janeiro saiu do hospital militar reformado com as pernas rígidas de tal modo que não podia andar senão apoiado por um acompanhante. Sioen foi aposentado aos 24 anos de idade.

O adoecimento aparece descrito por Charcot como se houvesse uma percepção da relação corpo-psiquismo que aparece aqui como hipótese não declarada ou de pano de fundo, em que Charcot pôde escutar os conflitos edipianos como pista para considerar a etiologia da doença.

Leituras psicanalíticas

Os casos são marcados pela saída da terra de origem, vontades imponentes de viajar milhares de quilômetros percorridos por diferentes continentes distantes geograficamente e longe da família e da cultura de origem. Os casos de James Lévy e Sioen – que considero “casos extremos”- para usar a expressão de Freud (1912/1996), ainda que analisados separadamente, em sua singularidade apresentam um conjunto comum de fatores etiológicos para a condução da vida erótica. Uma carga de herança simbólica em que a instância psíquica do Eu enquanto superfície corporal encarrega-se de encontrar lugar pela via dos desejos de viajar. 

O corpo é levado, literalmente, a se movimentar em longas distâncias para chegar ao extremo possível de outras posições, ainda que no mapa geográfico e ao adoecimento ligado à constituição, como um precipitado dos efeitos acidentais produzidos na cadeia infindavelmente longa de seus ancestrais. 

 Lévy e Sioen pareciam sentir-se perdidos, buscando lugares para estar no mundo. A sensação de estar perdido no mundo, digamos de uma certa inquietude, relaciona-se ao indizível, ao interdito, ao recalcado. O problema especial da natureza da força motora, que permite a repressão operar, constitui uma fonte constante de preocupação para Freud, sendo a angústia uma das principais forças motoras que conduzem à repressão (Strachey, 1915/1996). 

Vale lembrar que o inquietante é também uma espécie de coisa assustadora que remonta ao que é bastante familiar (Freud, 1919/2010), que se apossa do corpo e ganha vazão pela realização das viagens. A viagem de barco para longe de casa, que em outro momento teria sido um castigo de seu pai, o retorno à terra natal, à cultura de origem, à família são momentos de manifestação do adoecimento para Sioen. A par da coincidência temporal, Charcot parecia estar atento ao fato de que o início de sua doença pudesse ter relação com um movimento de fuga/retorno às origens. 

A fuga, considerando Freud (1915/2010, p. 149), representa a fuga do Eu, que se manifesta na retirada do investimento consciente e ocorre de maneira bem mais profunda e radical nas neuroses narcísicas. As fugas13 ou a realização dos desejos de viajar consistem então na retirada do investimento pulsional dos lugares que representam a inconsciente representação de objeto.

A “apreensão ansiosa” vivida, seja durante o serviço militar, seja nas ereções “inutilizáveis”, ou em situações de miséria aconteciam na tentativa de fugir do desamparo (embora acabasse o encontrando). É possível que, segundo Assoun (2013), haja uma espera por catástrofes ou malogros em que a angústia aparece pela via de um estado febril de excitação. O reconhecimento da diferença da qualidade de insatisfação presente na histeria e na neurose de angústia14 não impede Assoun (2013) de estabelecer “relações íntimas” entre elas, visto que um “pedaço” de neurose de angústia não faltará nas histerias como também em outras “psiconeuroses”. 

A vivência do conflito edipiano (não só com o pai real, o furioso, mas a cultura antissemita, agressiva, desde tempos ancestrais) nos jovens atendidos por Charcot pode ser inferida na busca impetuosa de um lugar onde pudessem se posicionar diante do desejo do outro. A aceitação de condições que os colocavam em sacrifício parecia evitar uma porção da realidade de suas origens, mediante a fuga. A fuga, segundo Green (1988, p.126), “é uma atitude, se é que se pode dizer, “ativamente passiva”. É pela via do trabalho com a arte – figurar em um teatro15 – para poder comprar pão, que Sioen sai da inércia masoquista de não ter o que comer – e busca uma saída ao desamparo revivido na América, esboçando nesta ocasião uma espécie de ação específica diante dos conflitos edípicos e “exigências da vida” (Freud,1895[1950]/1996, p. 349).

A história de conversão da religião, de sua relação com o Pai simbólico,  ou do desejo de se desligar do ambiente doméstico, podem ser fatores importantes na manifestação da EM, uma vez que ela parece ter eclodido depois de originariamente passar por um processo de implosão em que o esfacelamento de barreiras imunológicas chegaram a um extremo de sua capacidade normativa em determinado momento. De modo que os sintomas de EM dos jovens mantêm ligação com as vivências singulares de angústia, desgostos e repressão.

Com base em Inglez-Mazzarella (2001) supomos que a atitude dos jovens atendidos por Charcot de não conseguir ficar muito tempo dentro de casa, pode significar uma identificação (que assumiu um aspecto agressivo) com a figura do pai. A autora considera a contextualização do século XVIII em que a vida doméstica das mulheres estava vinculada ao “dentro de casa” e a dos homens ao “fora de casa”. Parece que os jovens precisavam sair recorrentemente de casa para poderem voltar e então serem recebidos após períodos de sacrifícios pessoais.

Os jovens adoecidos pareciam reagir ao buscar inconscientemente a destruição da figura paterna, no entanto acabavam revertendo a destruição para seus próprios corpos, durante viagens e decisões que os colocavam em situações de risco. Seria o caso de se pensar, com base em Freud (1923/2011) numa pulsão de destruição posta a serviço de Eros para fins de descarga, de uma satisfação.

Consoante a Freud (1919/2015), no texto sobre Considerações gerais sobre o ataque histérico, sugiro que as fantasias edípicas sobrepostas e as inervações somáticas levam os doentes de Charcot a realizar o desejo de viajar. Tais vontades contemplam tanto um desejo recente como indicam uma impressão infantil reavivada. As viagens repentinas ou fugas intempestivas podem atuar como uma espécie de condensação para a criação de uma forma de ataque histérico. De outro modo, podemos acrescentar que o “sistema mnêmico” do corpo adoecido pela EM é capaz de reativar as bases da lembrança por excitações recebidas, que por sua vez, reatualizam os traços mnêmicos inconscientes marcados pelas experiências vividas (Santos, 2019).

Os registros da pluma charcotiana são breves e pontuais, o que parece refletir também um discurso enigmático, desinvestido16 ou sem maior elaboração por parte dos doentes. As fugas e a atitude que se esboça na descrição dos casos, são uma demonstração do (não) saber – inconsciente –  diante da relação corpo-psiquismo como uma suspeita acerca da sexualidade, enquanto agente provocador do adoecimento no corpo.  

Assim, embora os registros charcotianos não permitam maiores discussões, nossa leitura de casos descritos pelo mestre de Freud nos leva a supor que existem em ambos os casos certos círculos de pensamento e de interesse em viajar que são dotados de poder afetivo, seja de ódio, enfrentamento ou desejo de morte/desligamento do rival do pai/figura paterna introjetada. As manifestações da EM podem ser interpretadas neste contexto como sinais de algo transmitido geracionalmente (algo que a epigenética pode nos ajudar a pensar). As ações específicas diante dos conflitos edipianos se mostram pela errância de Lévy e Sioen, nas viagens que parecem representar a busca por um tipo especial de escolha de objeto.

Segundo Bouchara (2014), para Charcot, que era um viajante frequente, “a viagem é uma cura”. Freud, que também adorava viajar, parece ter herdado mais este ensinamento da vida de seu antigo mestre. Por mais que o corpo de James Lévy e Sioen sofressem os sintomas orgânicos da esclerose múltipla, e das misérias sociais que puderam viver longe de casa, as viagens tomam o lugar da cura buscada no processo de tentativa de dissolução de conflitos eminentemente edipianos, considerando o Édipo um complexo sociossexual, que envolve a cultura herdada desde antes do nascimento dos jovens do-entes.

Referências

Assoun, Paul-Laurent. (2013). Les excitation et ses destins inconscients. PUF: Mayenne: France.

Bouchara, Catherine; Cohen, David; Laurent, Tom. Charcot, voir et guérir: une iconographie au service de la médecine. In: Charcot: une vie avec l’image. Art absolument: l’art d’hier et d’aujourd’hui. Hors-série. Exposition du 12 mai au 9 juillet 2014, 35 p.

Freud, Sigmund. (1895/1996) Resposta às críticas a meu artigo sobre a neurose de angústia. In: _____. Primeiras publicações Psicanalíticas (1893-1899). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume III. Rio de Janeiro: Imago. 

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Lepastier, Samuel. La crise hystérique: contribution à l’étude critique d’un concept clinique. Thèse à la carte. Atelier National de Reproduction des thèses. Université Paris V – René Descartes, 2004.

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Green, A. (1988). A angústia e o narcisismo. In: _____. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Escuta.

Gualejac, Vicent. O Édipo como complexo sociossexual. In: _____. Gaulejac,Vincent. A neurose de classe: trajetória social e conflitos de identidade,. Tradução de Maria Beatriz de Medina e Norma Missae Takeuti. Via Lettera, 2014, pp. 

Inglez-Mazzarella, Tatiana Teixeira. Quartinh… dos fundos: reflexão acerca do complexo de Édipo. In: Sigal, Ana Maria e Vilutis, Isabel Mainetti (orgs.). Colóquio Freudiano: teoria e prática da psicanálise contemporânea. São Paulo: Via Lettera. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2001, p. 69-91.

Jackson, John Hughlings (1884). Evolução e dissolução do sistema nervoso. In: Winograd, M. (2013). Freud e a fábrica da alma: sobre a relação corpo-psiquismo em psicanálise. 1 ed. Curitiba: Appris: FAPERJ, 2013, pp.. 183-247.

Lebrun, Jean-Pierre. (2004). A função do pai. In: ______. Um Mundo sem Limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, Companhia de Freud.

Santos, Elise Alves. Considerações psicanalíticas acerca da relação corpo-psiquismo em doentes de Charcot com esclerose múltipla e histeria. 2019. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura). Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, 2019.

Strachey, James. (1915/1996). Nota do editor inglês. Repressão. In: Freud, S.  A História do Movimento Psicanalítico, Artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago.

1.  Contardo Calligaris em um dos episódios do seriado PSI apresenta a questão no episódio “A herança”.

2.  Penso que se Freud estivesse lendo a interpretação feita aqui, ele mesmo pudesse ficar nervoso, mas não em função de sua hereditariedade nervosa, mas sim por sua discípula estar lhe incitando a fazer as pazes entre os pais, cada um com sua marca de contribuições (seja como pai da neurologia ou como pai da psicanálise). Talvez ele, usando nossa linguagem informal, pudesse dizer que estou viajando. Viajando nos papeis velhos e despedaçados de Charcot.

3.  Há mais de 2000 anos, os judeus foram, repetidamente, expulsos de suas terras natais originais ou das áreas onde estavam residindo. Foram difamados como grupo inferior, sendo que os antissemitas negam que eles sejam parte das nações em que residem. Interessante notar que Freud ( 1912/1996, p. 111) considera que se poderia ousar encarar a própria constituição (fatores inatos) como um “precipitado de efeitos acidentais produzidos na cadeia infindavelmente longa de nossos ancestrais”.

4.  Os semitas foram os primeiros povos a professar uma religião monoteísta, cultuando um único Deus. Lebrun (2004, p. 48) nota que, em nossa civilização, “a representatividade garantida pelo Pai pode ser atribuída à influência do monoteísmo”.

5. A Argentina situa-se a aproximadamente 11670 quilômetros de Paris.

6. A Legião Estrangeira é um destacamento militar criado por um país e formado por voluntários estrangeiros. Uma vez que os seus membros estão permanentemente em serviço, não seguem a mesma estrutura de um regimento padrão. Normalmente, a expressão “Legião Estrangeira” é usada em alusão à Legião Estrangeira Francesa que é uma unidade militar de grande desempenho da França criada no século XIX (1831) por Louis Philippe I de França, cuja sede fica na cidade de Aubagne (aproximadamente 800 quilômetros de Paris). Atualmente é a mais famosa e única legião estrangeira cuja tropa de elite está em operação no mundo.

7. Oran a mais de 2200 quilômetros de distância de Paris, uma das maiores cidades da Argélia Francesa, na época era território francês além-mar.

8. São 1728 quilômetros de travessia do continente africano (Argélia) para a costa marítima francesa do Mediterrâneo (Marselha).

9.  Em francês a palavra mousse neste contexto significa jovem menino, sobre um navio de comércio, que aprende o trabalho de um marinheiro. A mesma palavra também apresenta o significado de espuma proveniente de águas agitadas, bem como musgos que se acumulam em pedras.

10. Navio de comércio.

11. Situado no sul da França, a quase dois mil quilômetros distante da Argélia.

12. Aproximadamente 340 quilômetros de distância de Isère.

13. Exemplos mais recentes sobre a fuga de estímulos podem ser encontrados em Inglez-Mazzarella (2006).

14.  A neurose de angústia exibe um quadro clínico de irritabilidade, estados de expectativa angustiada, fobias, ataques de angústia completos ou rudimentares, ataques de medo e de vertigem, tremores, suores, congestão, dispneia, taquicardia, diarreia crônica, vertigem locomotora crônica, hiperestesia, insônia etc. (Freud, 1896/1996). A etiologia das neuroses de angústia é composta pelo acúmulo de excitação e pela abstinência forçada; pela excitação de origem somática não aliviada que não termina em gratificação; pela natureza sexual que perturba o equilíbrio das funções psíquicas e somáticas e pelo impedimento ou diminuição da participação psíquica necessária para libertar a economia nervosa da tensão sexual (Freud, 1895/1996; Freud 1896/1996).

15. A possibilidade de atuar no teatro, lugar onde “realidade e/ou fantasia se condensam (Gaulejac, 2014, p. 148) parece auxiliar de alguma forma na criação do romance familiar, pois ao contar uma história é possível incitar a própria trajetória psicossocial.

16. Com razão, Freud (1896/2023, p. 148-149) criticava: Os médicos adquiriram o hábito de não investigá-los [os distúrbios sexuais] se o próprio paciente não os apontava.

* Texto publicado no XIV Encontro Nacional e XIV Colóquio Internacional do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Núcleo João Pessoa: O Saber da Psicanálise e o Contemporâneo, em novembro de 2023.

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Ser Homem

homem em francês
se pronuncia com h mudo
homem em matogrossês
É Homem com h
Se corre ele pega, se fica ele come
Valentia de cobra
Serpentina penetrante
Lançadas nas peles carnavalescas
A pausa e o movimento
Conjugados em ritmo
O bicho inova
Começa a dançar
Toca a nota
Abstrai o vazio
Pisa no solo
Se afunda no inferno
Não teme o diabo
Escuta Dionísio
Vai ao seu encontro
Levanta
Pés no chão
Alça voo
Levita um instante
Alcança o feminino
Uma coisa lhe é revelada
Ele não suporta
Pois não tem base
O apoio lhe falta
L’être humain
Carta humana
Letra humana
Alternando maiúsculos
E minúsculos
Se queima da faísca divina
Está em Gaia
Não é ser
É ente
Fica do-ente de ser homem
E só
Ela o abraça

Goiânia, 18 de dezembro de 2024

Dra. Elise Alves dos Santos

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A visão do divã

À visão do divã

Árvore
Majestosa planta alta
Do Jardim América
Do Sul, do Centro-Oeste
Do coração do Brasil
Tem outra assim
Nessa Goiânia?
Vista do cômodo divã
A agenda repleta
De tempos preenchidos
Incômodos falantes
Sentidos de seiva
Percorridos, corridos
Através dos troncos e folhas
Um corpo imenso
Que busca direção
Rumo ao sol e a chuva
Porque a mãe-terra precisa
Mesmo dos postos opostos
Para fazer o sentido
De existir
Um vento mais forte
Soprou agora pouco
No final da última sessão

Goiânia, 25 de outubro de 2024

Dra. Elise Alves dos Santos.

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Cartema aos fazedores de pessoas vai-idosas: três versos nunca são demais

Seu rosto é seu cartão de visitas
Diz o discurso estético
Mais disseminado

Os médicos sendo os mais visados
Pra reprodução do argumento do
Bem envelhecer

Alerta de perrengues
Não abala adesões
A decisão transhumanista

É ética?
É Técnica?
É estética?

Ingênuo desconhecido
É você quem bate na porta
Do almejado não-saber?

Todas as alternativas anteriores
Nunca são demais aos
Passados por poucas e boas

Ou pior dizendo
Muitas e péssimas
Reações, adversidades

Culpas da indústria farmacêutica,
Ideológica, genérica, agista,
Que não faz pesquisa ou não se analisa

Máquinas de fazer pensares
Deformados,
Desarmonizados,

Que males inesperados
Se pode esperar
Com os enganos das verdadeiras idades

Dos atores-plateia que buscam
Masturbar um imaginário
Da beleza sem defeito

Reproduz o gosto formal
pela firmeza da juventude frágil
Que deve ser induzida

Custe o que custar
Um verso extra sem rima,
descabido, murcho
Deslugarizado

E o cartão de visitas
Serve para que?
Serve para quem?

Um primeiro passo para venda
Da própria cara
A imagem de « gente bonita »

Que só recebe carimbo de aprovação
Com a cara de quem dorme bem
Não tem ruga de preocupação

Canta forever young com orgulho
E paga caro pra ter voz
E paga com a própria cara

Pra ter rosto que se aguente
Pra alinhar e afinar as contas
Dos prejuízos de envelhecer

Perder o olhar
Perder o amor
Perder o desejo

Perder o tesão
O que é que pode ser um trem bão
Sem ser castração?

Quem tem cara de pau
Pra falar que não se preocupa
Com a aparência?

Questão de Eu-Pele
Que desaparece
Na pele de onagro

Dra. Elise Alves dos Santos,

Goiânia, 02 de outubro de 2024

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As batidas no trânsito: uma psicanálise política sobre acidentes de trabalho

Eu conheço o medo de ir embora

Não saber o que fazer com a mão

Gritar pro mundo e saber

Que o mundo não presta atenção

(Oswaldo Montenegro, em Estrada Nova)

Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Esse texto é uma reflexão afastada no tempo de quando fui batida no trânsito. De começo, quis dizer que fora por um motociclista imprudente. Depois, ainda poucos momentos após a colisão, a experiência bateu forte para me fazer questões sobre o nexo causal entre o acidente e o mundo do trabalho de um outro modo e para além do discurso posto. 

Falemos do discurso posto: a responsabilidade individualizada quando se trata de motociclistas é do sujeito – desculpe a expressão – “fodido e mal-pago”. E sim, sabemos que em nossas cidades brasileiras, é de “praxe” assistirmos os motoristas de motocicletas em particular fazerem entradas bruscas, “costuras” entre faixas contínuas, descontinuando de variadas formas o trajeto da segurança. Dirigirem com extrema rapidez, e aí soma-se a leveza do veículo e o peso da vontade de fazer a moto acelerar. Enfim, um modo que transgride leis e convenções de trânsito. 

Explico o uso do linguajar informal, quase chulo, porque vale a pena entender porque é tão comum e ao mesmo tempo difícil falarmos dos fodidos quando existem dois lados tão distantes: o do “fodido” e o dos “fodões”. O termo é fortemente sexualizado e imprime a ideia, para estes últimos, daqueles que podem gozar, ainda que psicanaliticamente falando “gozar” implique outros significantes, chamo atenção aqui para o sentido de que os fodões são aqueles que podem gozar, usufruir com prazer, de suas condições, objetos e posições de poder. 

Pode mais quem tem carro próprio, consegue pagar IPVA (imposto de propriedade de veículos automotores, uma sigla que a gente nem queria entender o nome porque pouco parece fazer sentido), troca a placa quando precisa, aciona seu motor turbo quando quer, consumindo mais combustível num toque leve dos pés no acelerador, se desloca com rapidez, passa na frente dos outros, dirige em primeiro lugar.

Digo assim, porque os “fodidos” são os que ficam submetidos aos fodões. No trânsito estamos todos “munidos” de veículos que potencializam os movimentos que precisamos/queremos fazer. Talvez esteja aí, nessa barra que separa a necessidade do desejo que toda essa discussão poderia se deter. 

Na epígrafe do texto, cito Oswaldo Montenegro dizendo que conhece o medo de ir embora, o motociclista que bateu em mim, teve medo de ficar pois caso fosse o hospital conforme meu pedido ficaria sem realizar as entregas definidas para a tarde. A discussão foi presenciada por outro motociclista que se surpreendeu com o colega que negou minha oferta de prestar socorro. E assim, o batedor de metas e de carro, deu seu jeito de passar pelo acidente. 

A realidade que este homem vive – emblema de toda uma categoria profissional -, provavelmente a mais repetida no trânsito de Goiânia, lembra mais a música de Milionário e José Rico, que diz que na longa estrada da vida “vou correndo e não posso parar na esperança de ser campeão alcançando o primeiro lugar”. 

Inspirada em algumas passagens da obra de Freud  (1895/1996; 1901/1996) penso nas disciplinas de saúde do trabalho, lembro de nossos programas de saúde da família. Embora Freud não trabalhasse no serviço público, por muitas vezes ele atendia pacientes empregados da grande “firma” B. & R. fazendo visitas profissionais tanto na residência dos funcionários como nos escritórios do prédio onde se localizava a empresa. Freud cita esse testemunho no texto sobre o esquecimento de impressões e conhecimentos.

Essa passagem de um caso diagnóstico duvidoso que Freud reconhece em sua prática, nos leva a refletir sobre elementos importantes para o estabelecimento do nexo causal esquecido no tratamento dos acidentados do trabalho no trânsito. Esquecemos (deixamos pra lá) o porque aceitamos desconhecer o por que pagamos determinados impostos, tal como o licenciamento anual dos veículos automotores. Os impostos que a classe que vive do trabalho não consegue pagar nem entender o porque deve pagar parece atrelada à renúncia ao seguro para Danos Pessoais por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT). A conta do de-ver cível do condutor de pagar seus impostos, não parece justa, ou melhor dizendo, pouco pagável para muitos, pois não se vê retorno ao se pensar numa relação custo-benefício quando se vive sob os piores modos de exploração do tempo e do trabalho humano.

Um acidente reativa os vividos anteriores, infantis e, às vezes, vivências muito precoces que emergem na clínica psicanalítica. Uma notificação de acidente implica também a suspeita de sofrimentos e até mesmo transtornos mentais relacionados ao trabalho. O acidente (e seus potenciais efeitos adoecedores e cumulativos) com motociclistas são fenômenos de repetição associados à condutas de risco, medidas adotadas para conseguir “dar conta” do trabalho. O seu jeito de dirigir pode dar uma forma específica à identidade de condutor, ou dito de outro modo, deforma a própria percepção levando a ver o trânsito e agir sobre ele para atender à ordem do patrão nosso de cada dia: “Consiga realizar as entregas”. Um super-Eu identificado com o discurso do “fodão”, mostra no trânsito como os motoristas revelam seus mecanismos de dominação mais sórdidos e impensados. As consequências aparecem tanto na deformação das identificações em curso, como na sucata metálica da moto amassada, e no corpo (a)batido do trabalhador precarizado em sua dupla valência, corporal e simbólica, não dissociáveis uma da outra (Aeschbacher, 2006).

Outro dia, vi o mesmo motoqueiro próximo ao local da batida, como Vital e sua moto, sem paralamas ou parachoques, seguia sem ouvir o alerta do pai sobre o perigo da motocicleta. Sobre duas rodas, apostava que conseguiria deformar o cronograma de entregas, vencendo os ponteiros do relógio, alcançando o primeiro lugar de algum lugar, garantindo a parca remuneração para cumprir seu dever de prover cuidados para a filha doente. Do ronco da moto só podia se ouvir o grande apetite mortífero de quem quer matar a fome de tentar dar uma guinada na vida, satisfazer a guina, dar conta das exigências da vida.

Referências

AESCHBACHER, Marie-Thèrèse. Les lésions corporelles d’origine somatique ou accidentelle à l’adolescence: une douleur en quête de sens. In: LAURU, Didier; LEMAIRE, Jean-Jacques.Enfances & PSY, Nº 32. Dossier Les Marques du corps. Paris: érès.  2006, pp. 16-22.

FREUD, Sigmund. O esquecimento  de impressões e intenções. In: _____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VI. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1996.

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Trabalhadores doutores

Em 2022 escrevi sobre a importância do nome próprio do trabalhador1. Texto inspirado na conversa que tive com o professor Dr. Roberto Heloani no encontro que organizei em 2014 sobre assédio moral no trabalho na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, lembro dele iniciar sua palestra criticando o uso do termo “colaborador”. Hoje vou entrar um pouco mais na questão dos nomes usados como vocativo e tratamento do trabalhador. 

É preciso prestar atenção nas palavras e técnicas que escolhemos, pois tanto umas quanto as outras “constituem um meio poderoso de transmitir valores, significados e atitudes”. O nome dado ao trabalhador precisa passar constantemente pelo escrutínio da reflexão e do pensamento crítico (Diniz, 2004). A proposta de escutar o que dizemos passa pelo reconhecimento dos pressupostos patriarcais e discriminatórios e o quanto eles podem ser usados para perpetuar papeis e estereótipos desvantajosos para o reconhecimento de quaisquer trabalhadores.

Seguindo a análise em um nível mais individual, reflitamos: na sociedade contemporânea é possível mudar de sexo, mudar de nome, acrescentar sobrenomes ou ainda manter os mesmos nomes mesmo que depois que seus corpos ou estados civis tenham se modificado. Nem sempre os documentos de identificação acompanham a materialização da realização do desejo de ter nova identidade. Por isso, a pergunta: “como você gosta de ser chamado ou de ser chamada?” é bem-vinda nas conversas de socialização dentro dos ambientes de trabalho. 

Doutor e doutora: um exemplo para questionar o dizer de um título próprio 

No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa o primeiro significado do verbete “doutor” é o seguinte: “1. Aquele que completou o doutorado” (Ferreira, 2010, p. 742). A par da consideração contemporânea da cultura brasileira, pactuada numa das maiores referências da língua portuguesa que é nosso Dicionário Aurélio, a defesa para que os advogados sejam chamados de doutores está num decreto imperial de 1º de agosto de 1825, importado e  exarado pelo Chefe de Governo de Dom Pedro I, que deu origem à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que dispõe sobre o título (grau) de doutor para o Advogado. A questão é, se Dom Pedro “falou” no século XIX, “água parou” até o século XXI?

Hoje temos “doutores de verdade”, como muitos querem defender, ou seja, aqueles que fizeram doutorado em várias categorias profissionais. Negando a pertinência cultural referendada pelo Ministério da Educação, de certificar doutores ou ainda aqueles assim nomeados pela tradição, na contramão da valorização dos títulos próprios conquistados pelas(os) trabalhadoras(es), o Decreto N° 9.758, publicado em 11 de abril de 2019 proíbe, na Administração Pública Federal, o uso de formas de tratamento bastante conhecidas dos manuais de Redação Oficial. O ato normativo determina que se utilize exclusivamente a forma “senhor”/”senhora” nas comunicações orais ou escritas entre agentes públicos federais, como forma de modernizar e desburocratizar o uso de pronomes de tratamento. A mesma pergunta feita à pertinência de um conteúdo legal de outrora é feita agora, por um viés crítico, pela advogada Dra. Jael Sânera Sigales-Gonçalves2.

Jael atenta-se para o uso de pronome justamente porque, geralmente, essas palavras substituem nomes próprios ou substantivos comuns, que podem ser associados às pessoas do discurso – 1ª (eu, quem fala), 2ª (tu, aquele com quem se fala) e 3ª (ele, do que/qual se fala). Além disso, o decreto proíbe formas como “Vossa Excelência”, “respeitável” e “doutor”, fazendo pensar que bandeiras como “Doutor é quem tem doutorado” teriam entrado para o rol de prioridades legislativas da União Federal, mas a intenção não parece acontecer por aí. O blog de Linguística da Unicamp, assinado pela Dra. Jael, provoca a reflexão:

Parece simples olhar para essas regras de emprego dos pronomes de tratamento e empregá-los “adequadamente” nas diferentes situações de comunicação. Porém, os Manuais não explicam, por exemplo, por que o feirante chama o cliente de “doutor”, e não o contrário; por que o porteiro é “Seu José”, não “Senhor José”; por que toda patroa de empregada doméstica é “Dona Fulana”, não importa a idade. Também não explicam como e por que a subversão das regras de uso das formas de tratamento e o jogo com o “status social” produzida por cada pronome produzem o riso:

Fonte: Sigales-Gonçalves, 2024.

Essas situações jocosas nos dão indícios de que há algo do funcionamento da fala que escapa às tentativas de sua regulação. Por isso, é preciso ir além dos Manuais para compreender o que está em jogo na divisão entre quem é “senhor” e quem é “excelentíssimo”, que poderia ser chamado de doutor e não é. Geralmente, quando se fala em “políticas linguísticas”, se fala de escolhas conscientes sobre a língua na vida social que vão resultar em práticas de “planejamento linguístico”, ou seja, ações concretas em que o Estado coloca em prática suas escolhas sobre a comunicação. Manuais de Redação Oficial e normas jurídicas que buscam regular o uso da língua – como o Decreto n.° 9.094/2017 e o Decreto n.° 6.583/2008 – são exemplos desse planejamento linguístico.

No horizonte da discussão do uso do título de doutores por força da tradição secular para advogados ou médicos, o que merece mais atenção é que há décadas diversos profissionais têm se habilitado legalmente para o reconhecimento formal de seus doutoramentos, seja em planos de carreira ou fora deles. As reflexões devem ir além do legalismo e tradicionalismo e é preciso repensar o que fazer diante de certas “psicopatologias da vida cotidiana”, para tomar emprestado o título de uma obra freudiana.

Se num mesmo ambiente há um advogado experiente, seja na administração pública ou na iniciativa privada, o jovem que tem os mesmos títulos deve ser tratado tal qual o colega, pois a formalidade e padronização são dois atributos presentes nos princípios constitucionais brasileiros de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. No entanto, nem sempre é assim… 

No Brasil, o doutorado é cursado em pelo menos quatro anos, isso após fazer um mestrado que dura pelo menos dois anos. Então, quando você passa a saber que alguém tem um doutorado, saiba que este brasileiro estudou em média o dobro de tempo que qualquer outro graduado em curso superior. O empenho nos estudos é característica individual, incentivada (ou não) pelas políticas educacionais do país, estado ou região. 

Logo, seguindo esta via de raciocínio, não deveríamos mais nos referir aos médicos ou advogados como doutores? A resposta deve vir como exercício de um certo posicionamento ético. Há graduados mais jovens que entendem que não deveriam ser assim chamados, pois não fizeram o curso específico que lhe concederia este título. Por outro lado, ainda restam muitos que se comprazem deste modo de serem chamados, pois alguns “subordinados”3 ainda lhe conferem um lugar de destaque, de poder, fálico em última medida. Nada impede que, informalmente, com o devido respeito e consentimento, possamos dar apelidos ou nos referir aos colegas por doutores ainda que não possuam os títulos específicos, conferidos pelo Ministério da Educação. 

No entanto, em momentos formais de apresentação do profissional em seu ambiente de trabalho, é mister que a apresentação curricular seja feita seguindo os princípios éticos amplamente divulgados nos variados Códigos de Ética que proíbem as categorias profissionais a divulgar e declarar possuir títulos acadêmicos que não possuam.

Antes de chamar qualquer graduado de doutor, pergunte-se, e o doutorado? Reconhecendo ou não o conteúdo abordado neste texto, atente-se ao direcionamento de sua expressão ao colega de trabalho que o responsabiliza daquilo que fala ou deixa de falar. Certifique-se se a sua liberdade está interferindo na imagem do outro, seja porque o diminui ou o menospreza. Esses cuidados são medidas de prevenção ao assédio moral no trabalho, pois o respeito e reconhecimento da trajetória de cada trabalhador cabe em qualquer ambiente de trabalho.

Trazer honra e homenagem para um colega que não possui o título e não mencionar outro que o possua é situação que não passa incólume a uma análise dos princípios de reconhecimento na carreira investida pelo(a) trabalhador(a). Seja no caso de você estar tendo dificuldades em se lembrar do nome de colegas de trabalho e se não se trata de amnésia, ou optar por termos que apaguem a sua singularidade, atente-se para o modo como se refere ou não se refere ao seu colega de trabalho. 

Lembrando que após o vocativo ou aposto de doutor e doutora vem um nome próprio singular que identifica o(a) trabalhador(a). É ele (ela), quem viveu a longa e muitas vezes difícil experiência de trabalho de anos a fio em pós-graduações, é ele (ela) quem deve ser perguntado(a), antes de tudo como prefere ser chamado(a) por aquele que entra em seu ambiente de relacionamento, seja para pronunciá-lo na forma escrita ou falada. Esse é o pronome de tratamento adequado, o respeito à singularidade do percurso e identidade de cada um. 

  1. Disponível em: www.elise.psc.br/2022/02/07/a-importancia-do-nome-proprio-do-trabalhador-uma-politica-linguistica-de-respeito/
  2. É Doutora e Mestre em Letras pela Universidade Católica de Pelotas, com estágio doutoral na Universidade de York, Reino Unido. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas e atua como professora em nível de graduação e pós-graduação stricto sensu na mesma instituição. Tem experiência de pesquisa, ensino e extensão na interface entre Linguística e Direito, especialmente em Direitos Humanos, Direito Linguístico e Políticas Linguísticas para a população migrante no Brasil. Lidera o Grupo de Pesquisa Língua, Direito, Estado e Sociedade – GELIDES/CNPq. Integra o ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes em São Paulo, vinculado à Faculdade de Direito da USP, onde atua como pesquisadora e advogada voluntária.
  3. Consultar Zaleznik e De Vries (1981).

Referências:

DINIZ, Gláucia. Mulher, trabalho e saúde mental. In: CODO, Wanderley. (org.). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. pp. 105-138.

HELOANI, José Roberto Montes. Encontro sobre Assédio Moral na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Auditório da TBC Cultura.  Comunicação verbal. 2014.

BRASIL. Decreto Nº 9.758 de 11 de Abril de 2019. Casa Civil da Presidência da República. Dispõe sobre a forma de tratamento e de endereçamento nas comunicações com agentes públicos da administração pública federal. Diário Oficial da União de 11/04/2019, p. 5 Edição Extra.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Doutor. In: ____. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5 ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 742.

SIGALES-GONÇALVES, Jael Sânera. Doutor é quem tem doutorado: o decreto presidencial sobre as formas de tratamento – Parte I. #Linguística – Blogs de Ciência da Unicamp, 20 dez. 2019d. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/linguistica. Acesso em: 08/08/2024.

VERDI, M.; BUCHELE, F.; TOGNOLI, H. A educação em saúde no contexto da atenção básica de saúde. Educação em saúde [Recurso Eletrônico].Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010, p. 25-41./2019/12/20/doutor-e-quem-tem-doutorado-o-decreto-presidencial-sobre-as-formas-de-tratam ento-i. Acesso em: 28 de janeiro de 2022.

ZALEZNIK, Abraham; De VRIES, F. R. Kets. Subordinação. In: _____. O poder e a Mente empresarial. São Paulo: Pioneira, 1981, p. 119-138.

Goiânia, 08 de agosto de 2024.

Dra. Elise Alves dos Santos.

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Discurso da festa de lançamento do livro

Boa noite, gente querida.

Peço licença para ler porque essas coisas de observação científica, elas podem desencadear muitas emoções e eu não quero desmanchar minha máscara-maquiagem teórica tão cedo. São tantos nomes, casos e histórias  que deixo pra falar depois no um a um pra quem quiser ouvir. Senão eu vou ter que me virar numa insanidade de agradecimentos extensos que poucas palavras não dão conta. Em ordem alfabética, gente de Anápolis, Bélgica, Brasília, Balneário Camboriú, Canadá, Goiâaaaniaaaa,  França, João Pessoa, Londres, Mineiros,  Palmas, Portugal, Rio de Janeiro, Juíz de Fora, São Miguel do Gostoso. Os convites chegaram para muitos, nem todos puderam vir. Todos e todas, gente do meu coração. 

Falei para alguns de vocês, queria que a festa fosse no dia do meu aniversário, dia 24 de abril, dia do jovem trabalhador, mas o livro não ia ser impresso a tempo, coisas dos tempos do trabalho. Desmarquei a data de abril e remarquei para hoje, dia 22 de junho. No dia 24 de abril fui então passar o primeiro dia da crise dos 40 na última casa do Freud.  Parênteses: eu aceito um prêmio consolação pra quem me deu só um abraço pelo livro, fica devendo um abraço  pelo aniversário. 

Então lá na casa do Freud, fui contando mentalmente pra ele, que eu tive muitas perdas como todo ser humano, extremamente humano, que perdi o prêmio de melhor tese pra um colega da UnB que escreveu sobre a capoeira. Merecido. Discordei com esse colega numa conversa sobre psicanálise uma vez e ele cortou a corda das relações comigo. Meu prêmio, não sei se ele tem…  eu tenho uma turma de amigos estudiosíssimos com quem posso falar e escutar um monte de assuntos e até discordar. Isso é que é prêmio. Não é?! 

 Então… sobre a ideia dessa festa. Loucura…

Durante um tempo me achei deficiente para enxergar o que era uma decisão louca de fazer uma festa dessas. O que conseguia ver era só uma desrazão econômica assumida do tipo que sai da lógica em que vivemos. Devia estar trocando de carro mas escolhi fazer a festa. Celes você lembra quando eu comprei meu primeiro e único carro até hoje, mostrando lá no estacionamento da UnB o brinquedinho novo que tinha comprado pra ir para Brasília. Isso já tem 10 anos!! Fui fazendo uma descrição desse cenário que me lembra a Salpêtrière para me ajudar a compreender alguns investimentos que cada um de vocês aqui é acionista. 
A loucura começa antes de pisar em Paris. Fui construindo a fantasia de estagiar no Salpêtrière onde Freud esteve e dessa fantasia consegui viver uma realidade. 

O dia-a-dia de contato com a vida exumada dos manuscritos de Charcot fez parte de mim. Olhos irritados pela ação dos micro-organismos dos fragmentos dos papéis antigos, garganta comprometida, uma bola de coisas foi fazendo parte do ritual de ressuscitar palavras, decifradas, alcançadas, perdidas, cansadas e diria até,  pedidas para aparecer. Família, amigos, colegas  bibliotecários, e desconhecidos ajudaram-me, sabendo ou não, a dar luz possível para às revelações emergentes das letras, das imagens, dos pensamentos e discussões que iam nascendo. 

A presença benfazeja faz bem, é redundante dizer. Mas digo com propriedade porque as ausências e a presença de pessoas em determinados lugares que conseguem ser poderosas em situações desastrosas, são adoecedoras. Breve lembrete da pandemia onde muito mais que o vírus nos fez adoecer. Em 2019 defendi o doutorado, mas ficar enfurnada em casa na quarentena interminável não me ajudou a escrever o livro. Que período tenso de adoecimento que a gente viveu. Só pra lembrar que a demora para concluir esse livro tem toda essa história que Charcot e Freud não poderiam imaginar mesmo depois da gripe espanhola. Se Charcot ajudou no tratamento de Joséphine, vimos também como as relações contemporâneas podem ser extremamente adoecedores ou curativas. 

Alguém poderia me dizer, a noite é sua, mas assim como a tristeza ou alegria.  Essa atmosfera que a gente está criando aqui vem de todos, então essa noite, só é possível porque estamos todos debaixo do mesmo céu de inverno que a gente aquece na proximidade que a gente faz acontecer aqui,  esse preto firmamento combina bem com a luz de estrela que brilha em cada um vocês, aqui  e agora. Essa festa é nossa. Encharcada do melhor de Charcot, que era um festeiro, cito Victor Hugo: A alegria não é somente alegre; é grande.

Estranho dizer, mas escolhi a festa aqui também por causa desse espaço. Ia ser difícil levar todos para Paris, e aqui que me lembra a arquitetura e a aventura de morar vizinha do Salpêtrière, de pesquisar no hospital onde Freud trabalhou. Arcos visíveis esses elementos que suportam o peso de toda uma estrutura (de um corpo com suas reentrâncias somáticas e psíquicas em extremos do não-saber que se faz conhecer).

Apareceu aí no painel uma foto minha que Alexandre tirou em frente a escultura de Pinel ao lado de um alienado da atualidade. Lembro bem da impressão que fiquei do jovem que parecia querer aparecer comigo no registro do momento atual, que queria capturar o passado. Olhos esbugalhados entre a timidez e a mostração. Assim estou aqui, agora, meio pinel com tanta coisa ainda pra elaborar, desenvolver, viver.

Outra loucura. Ia pedir para todos viessem fantasiados com a moda francesa do século XIX, mas me pareceu forçar uma camisa difícil de servir para as opções de nosso tempo. Resolvi me encharcar de nanquim noir, caneta tinteiro de escrita de Charcot pra gente bisbilhotar depois o que ele escreveu. Mas pra não falar deselegantemente no livro, chamei de pulsão epistemofílica. Rs E vocês, estão todos e todas, bonitos e bonitas com suas fantasias escolhidas para essa noite! Cheios de palavras escritas no contorno da aura de cada um, irrepetível, original.

Entrei na metáfora dos dossiês franceses que fiz descobrir e encomendei macarons cor de papel, com fita de tinta preta pra entregar de lembrança ao final. Os sabores são complexos (três sabores) Quem acertar ganha um doce! Complexos como os conteúdos que me propus pesquisar, e que tem sido pesquisados há tanto tempo e cada vez mais por mais gente comprometida. 

A brincadeira de descobrir sabores não cobra resposta, o doce, recompensa pra quem acertar ou errar é garantido. Porque o mais importante é entrar na brincadeira do palpite baseado em experiência. Além da sobremesa francesa, ofereço também os brasileiríssimos docinhos de leite em pó (meu preferido) e brigadeiros clássicos também. Mais representações de folhas e tinta…

Já falei que é um prazer ter vocês aqui. 

Também escolhi um cardápio de comida confortável com assinatura de chef e tudo. Ela poderia estar na cordon bleue, de Paris, de Londres, mas ela está aqui unindo nossos cordões coloridos,  transformando meu desejo de oferecer – pelo menos por uma noite – o banquete numa festa que gostaríamos que fosse nossa rotina de proletários. 

A noite é especial,  a autora, leitora da própria fala, conseguiu pôr de algum jeito, seu jeito de tentar transmitir o que foi apreendendo… alegria imensa de compartilhar essas próximas horas com vcs. 

Alguns de vocês estavam na festinha à fantasia que fiz em 2019 para comemorar o término do doutorado, pendurei folhas dos dossiês transcritos nas paredes e pilares para decoração. Hoje é festão, consegui coletar e unir as folhas soltas em um livro. Por hora, estou satisfeita e convido vocês para curtir os sons de diferentes estilos e épocas que nos povoam. 

Meus votos são para  que o corpo teórico, o corpo-psiquismo, o corpo-memória, o corpo seu, o meu e o nosso se embale nos extremos dos espaços que conseguimos habitar. Aproveitem a festa, senhoras e senhores ou profitez bien, monsieur et dames! 

Agora se me permitem fazer um coisa meio brega, meio chique, talvez especial… vocês me permitem sem muitos julgamentos? (Ouvi algumas respostas « sim » que me foram suficientes para finalizar meu discurso).

Pra quem a gente ama, a gente promete o céu mesmo sabendo impossível entregar esse presente, então dou a vocês o que eu não tenho, ainda que por um minuto passageiro, recebam meu pedacinho de céu que ofereço a vcs ao som de Stromae que abre a nossa pista de dança! Manda ver Dj!

E o teto retrátil do salão se abre ao controle remoto do maître da Bella Eventos

Goiânia, 27 de junho de 2024.

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Diagnósticos queimados: uma análise crítica sobre Burnout e Burnon*

Eles estavam todos vestidos em uniformes de brutalidade, eh!
Quantos rios nós temos que atravessar?
Antes de podermos falar com o chefe?

(Burn’ and Lootin’, de Bob Marley & The Wailers)

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) publicou em sua rede social, no dia 20 de maio
de 2024, um carrossel com imagens informativas sobre a diferença entre as síndromes
Burnout e Burnon”. A diferença essencial seria que,
no Burnout, o esgotamento profissional é causado por estresse crônico no trabalho em
contextos de baixa realização profissional, enquanto que no Burnon seria um acúmulo
progressivo de estresse em “pessoas perfeccionistas e com disponibilidade excessiva para o
trabalho”, em contextos de alta realização profissional.
Curioso pensar que a demanda no mercado de trabalho por desempenhos
extraordinários alude a um “defeito” ou a uma “característica” de perfeccionismo ou
disponibilidade excessiva que podemos, no discurso, reconhecê-las como negativas
nos processos seletivos para preenchimento de vagas. Mas tais características são
justamente valorizadas pelos candidatos pois eles sabem que, no fundo, é isso que a empresa
quer – dedicação máxima, qualidade ofertada na medida de um sintoma em que a perfeição
pode até mesmo se transformar num extremo de sufixo “ismo”: “meu problema é o
perfeccionismo”. Assim, produzimos subjetividades excessivamente disponíveis que
entendem que essas mesmas características precisam estar presentes e serem
desenvolvidas. Ainda que sejam socialmente reconhecidas como problemáticas, os trabalhadores
parecem entender o discurso hipócrita que defende que as descrições patológicas seriam
antes, uma vantagem competitiva.
A expectativa presumida de que a divulgação dos impactos causados por tais
síndromes pudessem servir de ação de educação em saúde do trabalhador, que pretende a
prevenção e o enfrentamento do esgotamento, pode até ser louvável. No entanto, é preciso
inverter a rota de direcionamento de atribuição da causalidade do esgotamento
profissional. O que precisa de fato ser prevenido e enfrentado são as causas primeiras do
esgotamento, que não estão, na maior parte das vezes, nas individualidades dos
trabalhadores.
Mais do que “promover um ambiente de trabalho equilibrado e oferecer suporte aos
trabalhadores afetados pela rotina laboral”, é preciso questionar o que torna o contexto de
trabalho tão desequilibrado e desigual. A notícia de que o Ministério Público do Trabalho do
Rio Grande do Sul recebeu 60 denúncias de comparecimento obrigatório ao trabalho durante a
crise após as enchentes que atingiram o estado ilustra bem o conflito de interesses na luta
de classes sociais. Assunto que parece querer ser afogado pelos que querem sobreviver à
custa das desgraças alheias. O suporte aos trabalhadores precisa acontecer no âmbito
coletivo, compreendendo que estamos produzindo condições de risco para o adoecimento.
Assim, não é o caso das empresas/instituições devolverem o problema aos
trabalhadores e afirmar que a prioridade é o “autocuidado”, como se cada um cuidando do
próprio umbigo fosse curar uma ferida macrossocial. Estabelecer “limites saudáveis”
envolve a concepção de saúde defendida por nossa sociedade e envolve sobretudo a
condição que cada trabalhador tem de usufruir de sua própria liberdade de expressão, sem
medo de receber retaliações ou de inclusive ser assediado até o ponto de ser demitido ou
de ser forçado a pedir demissão. É óbvio que buscar orientação de profissionais de saúde é
necessário, mas não associar o nexo causal do adoecimento com o trabalho e deixar de priorizar a prevenção, acaba por “tapar o sol com a peneira” na ideologia do self made man.
O acúmulo de estresse crônico no burnout, por exemplo, “que não foi gerenciado com sucesso”, com base na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), atribui
imediatamente o problema a uma questão de gerenciamento… Dessa forma ao reduzir a situação a uma questão de como administrar o problema, se apaga a discussão política, e a
análise séria que deveríamos estar ocupados nas políticas de saúde do trabalhador e da
trabalhadora.
Os 130 possíveis sintomas diferentes do burnout, por exemplo, não podem ser
considerados fundamentalmente causas da síndrome, as descrições nos manuais e
questionários que existem sobre o tema são mais efeitos de efeitos. Com base em Lima
(2021), chamaria esses sintomas de desdobramentos que acontecem no corpo-psiquismo do(a)
trabalhador(a), descritos fenomenologicamente como: exaustão física e mental,
despersonalização, negativismo, cinismo, problemas cardiovasculares, distúrbios
do sono, depressão, ansiedade, redução da eficácia profissional…
Junto com Assoun (2018), concordamos que não é que sejamos misoneístas no
sentido de recusar o discurso novo, mas, fundamentalmente, a questão do burnout e do
mais novo termo burnon não é nova, as nomenclaturas são uma falsa novidade. Antes dos
alemães cunharem esse termo, o médico e psicanalista francês Christophe Dejours (2004) já
estava investigando a psicodinâmica do trabalho para além da psicopatologia, como os trabalhadores continuam produzindo apesar dos péssimos contextos de trabalho.
Estamos tapando o mal-estar na cultura com esses gadgets sociais. O gadgetBurnout” é
um discurso social atual que comporta uma metáfora interessante, quer dizer, a destruição
do sujeito pelo fogo. No entanto, ele é analisado apenas fenomenologicamente, seja como
resultado do esgotamento e da incapacidade instalada do burnout, seja pela manutenção da
capacidade de trabalho concomitante com os sintomas depressivos.
Para considerar o esgotamento pela perspectiva da psicanálise é preciso como
defende o psicanalista Christian Dunker (2015) propor a diagnóstica (sim, no feminino)
do sujeito com a transversalidade diagnóstica entre disciplinas clínicas (médica,
psicanalítica, psiquiátrica, psicológica); tanto a flutuação discursiva dos efeitos diagnósticos
(jurídico, econômico, moral) como sua incidência no real das diferenças sociais (gênero,
classe, sexualidade). Assim, é preciso reconstruir a forma de vida a partir de um escopo
ético de uma racionalidade diagnóstica de uma maneira ampliada. O esgotamento de uma
mulher negra e pobre, esgotada pelo trabalho é diferente do esgotamento de um homem
branco e de classe social mais privilegiada. Os laços entre trabalho, linguagem e desejo
precisam ser refeitos para se pensar a patologia que se exprime no sintoma, no mal-estar e
no sofrimento – como uma patologia social.
A função essencial na investigação do diagnóstico é importante para fins de pesquisa
e planejamentos, mas o essencial no acompanhamento do sujeito é a sua narrativa, como
ele se implica na construção de sua própria história, juntamente com a análise do contexto
de trabalho em que ele está inserido. E as vozes que dizem que a saúde do trabalhador
importa advém de lugares muito diferentes, de cuidado ou de exploração. Parafraseando Caetano Veloso,
eu diria, “é preciso estar atento e forte, não temos que temer a morte” especialmente, de
um modelo incendiário de produzir a vida.


Referências:
ASSOUN, Paul-Laurent. A Antropologia Psicanalítica: uma chave para pensar o
contemporâneo. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 21(3), 431-441, set. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p431.2. Entrevistado por Cristina
Lindenmeyer. Transcrição e tradução: Elise Alves dos Santos e Vivian Ligeiro, 2018.

DEJOURS, Christophe.  Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Selma Lancman & Laerte I. Sznelman (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Brasília: Paralelo 15, 2004. 346 pp.

DUNKER, C.I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre
muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

LIMA, Estevam Vaz de. Burnout: a doença que não existe. 1ª ed. Curitiba: Appris,
2021, 159 p.

Goiânia, 22 de maio de 2024.

Dra. Elise Alves dos Santos.

*Texto aceito para publicação no Boletim Informativo de Saúde do Trabalhador do Estado de Goiás em agosto de 2024.

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Ensaios

Um anjo que caiu do céu

Quem me dera poder fazer uma poesia para falar da vida de alguém. O título remete a uma expressão amorosa que usamos quando uma pessoa chega na vida de outras para torná-la bem cuidada, tratada com carinho, atenção. Enfim, é uma dádiva da vida ser agraciado com um anjo que cai dos céus para estar conosco. Seu nome era Ângelo, mas seu apelido, era “anjinho”.

O Anjinho que vivia a melhor fase de sua vida, segundo seus amigos e familiares, e até minha percepção dos breves encontros que nos restaram de décadas de convivência enquanto vizinhos de moradia, nas conversas rápidas de elevador, mas nada superficiais, porque Anjinho, generoso que era, “dava o que tinha” no contato amoroso com todos com quem encontrava. 

Mas diante da morte, irrepresentável e sem poesia que dê conta de aplacar o sofrimento, nos falta demais, faltam tantas palavras que me sinto convocada a trazer um monte delas, tentar colocar – não digo sentido, mas algum consolo, vontade de fazer justiça à sua vida. Enxurrada de “moções pulsionais”, eu escreveria para Freud se tivesse talento suficiente, aos modos de Lou-Andreas Salomé, e diria que essa expressão que especifica um estímulo interno determinado, tem na morte do semelhante a fonte mais produtiva, atualiza o sentir, o pensar, a pulsão em ato, essa coisa endógena que é a dor, a novela que se presta a mostrar descaradamente e detidamente sobre a dor é tão impactante que chega dói.

Uma psicóloga do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do ABC Paulista1 me envia a notícia de que encontraram o corpo dele. Como queríamos não ter tido essa notícia: da agonia do desaparecimento, da esperança de sobrevida mesclada com o desespero da falta de respostas.

No mesmo dia, pela manhã, eu contava para alguns amigos sobre o ocorrido, e eu mesma havia dito (consolo para mim mesma, frases reiteradamente repetidas que tentam trazer algum conforto ou compensação pela morte): “Morreu fazendo o que gostava”. Que bom que fazer o que gostava foi possível. 

É isso que pudemos ver em seu velório. A maior sala do cemitério Jardim das Palmeiras repleta de coroa de flores – eu contei 30, porque nessas horas acho que queria objetivar quantas homenagens estavam em curso, e quantas serão insuficientes para dizer o quanto sua vida era preciosa. 

Anjinho se encontrou na profissão que o permitia voar. A mágica que nos envolve a todos desde antes de Santos Dumont, nosso desejo de liberdade, de realizar a loucura de ter braços voadores que nos permitem movimentar nos espaços onde nossas pernas jamais conseguiriam ir. Querer falar de um jeito bonito, não me faz ser menos envolvida com a técnica. Ele deveria ter tido a chance de continuar alçando voos.

Sei que está muito cedo para os enlutados mais próximos, mas não é preciso ler A negação da Morte de Ernest Becker para dizer que o discurso de resignação aparece muito rapidamente para os crentes de que um ser maior assim o quis. Tentar tampar o buraco enorme que a falta de Anjinho vai fazer é muito compreensível e socialmente aceito. E todas as manifestações de fé devem ser aceitas, incluindo a fé na ciência. 

E é por isso – meus amigos do Edifício Itaipu, com tive a grata experiência de partilhar toda adolescência – que convido ao trabalho do luto, que mais do que percorrer as fases estabelecidas por Elizabeth Klüber-Ross (algumas etapas acontecem essencialmente em ciclos), deve sustentar além da aceitação mas (também) a negação da morte, pois os riscos “inerentes” ao trabalho de voar precisam ser melhor observados. 

Finalizo, aquilo que pretendia ser uma condolência, como também uma incitação à fase de revolta, não somente ao que o choro, e tantas outras modificações orgânicas – inclusive o retorno ao inorgânico – podem causar. A ideia de re-volta, de voltar a dar a volta, percorrer novamente o caminho do estranhamento (o que aconteceu realmente?, o que poderia de fato ter sido evitado?, por que?). A investigação de um acidente de trabalho fatal passa por uma demanda. 

Não! Não, está tudo bem. Precisamos reconhecer coletivamente que embora o tempo possa aplacar o extremo sofrimento, ele deixa marcas indeléveis, algumas tão inconscientes e poderosas que jamais poderemos imaginar. Deixemos que nossas moções pulsionais nos mobilizem para buscar outros caminhos para a segurança dos trabalhadores perdidos nos ares, nas matas densas, no escuro das noites sem estrelas.

O Anjinho que caiu dos céus não pode mais estar conosco como antes. Que sua presença em memória seja resgatada. Nesse “Abril Verde”2, a notificação deste acidente de trabalho fatal, desta tragédia, deve ser, sem dúvida, investigada. Fica para nossa herança acompanhar as ações reclamadas para garantir a continuidade da vida de trabalhadores do céu – que não deveriam literalmente ter de dar suas vidas à profissão – eles, precisam poder voltar à terra. 

  1.  Eliane Pintor já nos agraciou com sua presença no Seminário sobre Saúde Mental no Trabalho, que pude organizar em nome do CEREST Goiás em 2023, com sua vinda patrocinada pelo Ministério Público do Trabalho em Goiás.
  2.  Abril Verde é uma campanha de conscientização realizada durante todo o mês de abril e que busca chamar a atenção para a importância da prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.

Elise Alves dos Santos,

Goiânia, 02 de abril de 2024.

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Ensaios

Barulho, distúrbios psicológicos e sua interpretação*

Quando fui professora de Comportamento Organizacional em uma pós-graduação em Pedagogia Empresarial, utilizei o livro de Psicologia Social como referência de base para a disciplina. Revendo o material, me chamou atenção as contribuições da Psicologia Ambiental como campo de investigação e estudos sobre espaço pessoal, comportamento territorial e relações com o meio ambiente compartilhado. As ideias dos autores sobre a aplicação da psicologia em áreas como o Meio Ambiente e o Direito me reportou diretamente ao ambiente de trabalho. Eles pareciam descrever a situação de trabalho vivenciada no ato mesmo da leitura. No serviço público e na maioria dos ambientes de trabalho, regra geral, os espaços são restritos e/ou compartilhados, mas não necessariamente há cuidado com o barulho. A questão da atitude em relação ao barulho pode ser sublinhada nos estudos de Cohen (1986), apud Rodrigues, Assmar e Jablonski (2000, p. 415) que mostram como “o barulho das cidades danifica tanto a psique quanto os tímpanos”. Trata-se de uma sobrecarga sensorial, de vocativos verbais e desabafos ruidosos, que repetem estimulações bombardeadas entre colegas de trabalho1.

Além da própria voz que busca a todo custo se externar em quaisquer possibilidades e ambientes, existem ainda outros sons. Músicas, palestras, conversas vindas de aparelhos eletrônicos de comunicação, alarmes, mensagens sonoras, alvoroços barulhentos de vídeos e áudios compartilhados, e nada disso no modo silencioso ou com uso de fones de ouvido. Um estresse reiteradamente repetido que exige da capacidade de processamento de um excesso de excitações. O que pode ser, psicanaliticamente falando, bem traumático e provocar, em longo prazo, uma exaustão emocional.

Os aparelhos pessoais de comunicação facilitam nosso trabalho (ainda que não custeados pelo empregador na maioria das vezes) mas quando utilizados sem fones de ouvido, ou fora de espaços reservados, seja em ligações particulares atendidas em pleno posto de trabalho ou conversas entre colegas, acionam os perigos da superestimulação. A publicização da vida particular sem questionamento desconsidera a presença do outro ao seu redor.

O trabalhador acaba se comportando de forma a não se importar com a disponibilidade do ouvido alheio, sem o menor constrangimento em agir exclusivamente conforme o próprio interesse (na maior parte das vezes por não estar em consciência do feito, portanto), sem saber se o que está falando pode interessar ou atrapalhar quem está próximo. O barulho nos torna menos sociáveis, agrava problemas mentais e estimula a agressividade, segundo o autor supracitado e segundo os relatos de experiências que estamos acostumadas a ouvir na clínica do trabalho que nos chega no consultório da clínica psicológica e psicanalítica.

O agravo de saúde do trabalhador “Perda Auditiva Induzida por Ruído” (PAIR) apresenta, em seu protocolo, efeitos não-auditivos da exposição ao ruído. Dentre eles, transtornos comportamentais ou distúrbios psicológicos diversos como nervosismo, irritabilidade, ansiedade. O corpo-psiquismo – embora tenha manifestações diversas biopsicossociais – é afetado pela soma de ruído e pode estar associado a uma maior incidência de dores de cabeça, náusea, bem como transtornos da comunicação, neurológicos, vestibulares, alterações gastrointestinais, do sono, da visão, do sistema circulatório, da visão, e até mesmo impotência sexual (Rodrigues, Assmar e Jablonski, 2000 e Brasil, 2006).

Um outro agravante para a saúde mental refere-se a maneira como nós sentimos o ruído, uma vez que a capacidade de sentir enquanto reação à percepção dos decibéis depende tanto do ruído em si, quanto de nossas atitudes em relação a ele. A sensibilidade aos ruídos é aumentada quando o trabalhador entra numa fase de sobretrabalho, o que aumenta sua irritabilidade (Silva, 2011).

Afinal, o barulho é um termo psicológico aos sons que julgamos desagradáveis: uma música de heavy metal pode ser fonte de indescritíveis prazeres para uns e de poderosa tortura para outros. No ambiente de trabalho, as conversas em tom alto de voz, característica quase que considerada latino-americana, nos remete a uma análise de fatores subjetivos que incidem sobre a interpretação ou atribuição que damos ao grau de desconforto percebido com o barulho.

Há uma cultura do falar mais alto que pode indicar a vontade literal de falar mais alto que o outro, se fazer ouvido pela força do som emitida pelo aparelho fonoaudiológico. Ter voz reconhecida pelo outro (seu conteúdo) é outra coisa. Assim, quando é possível algum tratamento em relação ao barulho, utilização de fones de ouvido que cancelem em certa medida o ruído, a sensação de controle sobre o fator de risco2 à saúde aumenta. Quando podemos analisar qual situação está nos incomodando e ela pode ser reconhecida, a referida sensação pode atenuar o incômodo do barulho indesejável pelas intervenções que daí podem surgir.

Os autores da Psicologia Social nos dão um exemplo profícuo para pensar a interpretação como recurso para propiciar elaboração da sensação de ruído: embora caminhões de carga pesada sejam mais barulhentos que motocicletas, tendemos a nos queixar mais destas últimas, talvez por acreditarmos aos primeiros um serviço de utilidade pública. O princípio de fazer sobrepujar o interesse do público sobre o individual nos permite realçar nossa percepção de justiça social. Como dissemos para nós mesmos: “é por uma causa nobre” ou justificável ou ainda, mais compreensível.

Fica o alerta para o barulho causa determinante, contributiva ou latente para o desencadeamento dos efeitos danosos que citamos aqui. A consideração dos barulhos contínuos enquanto fator de risco vai além do prejuízo aos tímpanos em função dos decibéis “a mais”. Nossa saúde psíquica também está em jogo. Assim, a investigação dos transtornos mentais relacionados ao trabalho contribuem em sua definição de caso3 (Brasil, 2019) para investigar a PAIR. No trabalho de notificação compulsória dos agravos de saúde do trabalhador (Goiás, 2006) os sintomas devem ser escutados pelos profissionais de saúde dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador e toda Rede de Atenção Psicossocial. Essa escuta permite que seja dada a devida atenção aos fatores corriqueiros como o ruído, o barulho constante como um agravo à condição de saúde psíquica e que podem estar associados à rotina de vida dos(as) trabalhadores(as).

Às vezes, pouco se pode fazer com “o leite derramado”, estamos limpando o chão, usando do distanciamento emocional e cultivo da insensibilidade como formas de defesa contra as demandas excessivas características do meio ambiente de trabalho (Rodrigues, Assmar e Jablonski, 2000). Contudo, é preciso levar em conta a experiência de Bernardino Ramazzini (Santos e cols. 2018, In: Goiás, 2018), desde o século XVII nos dizendo que “é melhor prevenir que remediar”. Baixar o tom da voz para elevar o nível de cuidado.

Notas:

*Texto escrito para o Boletim de Saúde do Trabalhador da Gerência de Vigilância Ambiental e Saúde do Trabalhador.

1 Aqui caberia uma outra discussão sobre o espaço de fala, de escuta, de discussão e de valorização do trabalhador, que na sua falta, pode muitas das vezes se transformar em voz que não quer a todo custo se calar.

2 Considera-se fatores de risco aqueles decorrentes da exposição aos agentes presentes no ambiente de trabalho, que em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador (Goiás, 2009).

3 Definição de caso de Transtornos mentais relacionados ao trabalho: Todo caso de sofrimento emocional em suas diversas formas de manifestação tais como: choro fácil, tristeza, medo excessivo, doenças psicossomáticas, agitação, irritação, nervosismo, ansiedade, taquicardia, sudorese, insegurança, entre outros sintomas que podem indicar o desenvolvimento ou agravo de transtornos mentais utilizando os CID – 10: Transtornos mentais e comportamentais (F00 a F99), Alcoolismo (Y90 e 55 [Digite texto] DDT-TMRT Y91), Síndrome de Burnout (Z73.0), Sintomas e sinais relativos à cognição, à percepção, ao estado emocional e ao comportamento (R40 a R46), Pessoas com riscos potenciais à saúde relacionados com circunstâncias socioeconômicas e psicossociais (Z55 a Z65), Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96) e Lesão autoprovocada intencionalmente (X60 a X84), os quais têm como elementos causais fatores de risco relacionados ao trabalho, sejam resultantes da sua organização e gestão ou por exposição a determinados agentes tóxicos (Brasil, 2019).

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Perda Auditiva induzida por Ruído (Pair). Saúde do Trabalhador Protocolos de Complexidade Diferenciada. Volume 5. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Brasília: DF, 2006, pp. 40.

BRASIL.. Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública. Nota Informativa Nº 94/2019-DSASTE/SVS/MS. Orientação sobre as novas definições dos agravos e doenças relacionados ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Brasília, 2019.

GOIÁS. Decreto Nº 6.906, de 30 de abril de 2009. Regulamenta a competência da Secretaria de Estado da Saúde quanto à saúde do trabalhador. Gabinete Civil da Governadoria. Governo do Estado. Portaria Nº 1128 de 28 de dezembro de 2018. Aprova as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas para Transtornos Mentais relacionados ao Trabalho. Diário Oficial do Estado de Goiás, Goiânia, quarta-feira, 02 de janeiro de 2019, Ano 182 – Diário Oficial/GO N° 22.963 p. 23.

GOIÁS. Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Portaria Nº 34 de 9 de março de 2006. Torna os agravos de saúde do trabalhador de notificação compulsória no Estado de Goiás. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/component/content/article/337-suvisa/18483-legislacoes-estadua is-sa ude-do-trabalhador?Itemid=101 Acesso em: 17 de jan. de 2024.

RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Algumas áreas de aplicação da psicologia social. In: RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Psicologia Social. 19 ed. reformulada. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 395-419.

SILVA, Edith Seligmann. Psicopatologia da recessão e do desemprego. In: SILVA, Edith Seligmann. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez Editora, 2011, pp. 401-457.

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