Eu conheço o medo de ir embora
Não saber o que fazer com a mão
Gritar pro mundo e saber
Que o mundo não presta atenção
(Oswaldo Montenegro, em Estrada Nova)
Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Esse texto é uma reflexão afastada no tempo de quando fui batida no trânsito. De começo, quis dizer que fora por um motociclista imprudente. Depois, ainda poucos momentos após a colisão, a experiência bateu forte para me fazer questões sobre o nexo causal entre o acidente e o mundo do trabalho de um outro modo e para além do discurso posto.
Falemos do discurso posto: a responsabilidade individualizada quando se trata de motociclistas é do sujeito – desculpe a expressão – “fodido e mal-pago”. E sim, sabemos que em nossas cidades brasileiras, é de “praxe” assistirmos os motoristas de motocicletas em particular fazerem entradas bruscas, “costuras” entre faixas contínuas, descontinuando de variadas formas o trajeto da segurança. Dirigirem com extrema rapidez, e aí soma-se a leveza do veículo e o peso da vontade de fazer a moto acelerar. Enfim, um modo que transgride leis e convenções de trânsito.
Explico o uso do linguajar informal, quase chulo, porque vale a pena entender porque é tão comum e ao mesmo tempo difícil falarmos dos fodidos quando existem dois lados tão distantes: o do “fodido” e o dos “fodões”. O termo é fortemente sexualizado e imprime a ideia, para estes últimos, daqueles que podem gozar, ainda que psicanaliticamente falando “gozar” implique outros significantes, chamo atenção aqui para o sentido de que os fodões são aqueles que podem gozar, usufruir com prazer, de suas condições, objetos e posições de poder.
Pode mais quem tem carro próprio, consegue pagar IPVA (imposto de propriedade de veículos automotores, uma sigla que a gente nem queria entender o nome porque pouco parece fazer sentido), troca a placa quando precisa, aciona seu motor turbo quando quer, consumindo mais combustível num toque leve dos pés no acelerador, se desloca com rapidez, passa na frente dos outros, dirige em primeiro lugar.
Digo assim, porque os “fodidos” são os que ficam submetidos aos fodões. No trânsito estamos todos “munidos” de veículos que potencializam os movimentos que precisamos/queremos fazer. Talvez esteja aí, nessa barra que separa a necessidade do desejo que toda essa discussão poderia se deter.
Na epígrafe do texto, cito Oswaldo Montenegro dizendo que conhece o medo de ir embora, o motociclista que bateu em mim, teve medo de ficar pois caso fosse o hospital conforme meu pedido ficaria sem realizar as entregas definidas para a tarde. A discussão foi presenciada por outro motociclista que se surpreendeu com o colega que negou minha oferta de prestar socorro. E assim, o batedor de metas e de carro, deu seu jeito de passar pelo acidente.
A realidade que este homem vive – emblema de toda uma categoria profissional -, provavelmente a mais repetida no trânsito de Goiânia, lembra mais a música de Milionário e José Rico, que diz que na longa estrada da vida “vou correndo e não posso parar na esperança de ser campeão alcançando o primeiro lugar”.
Inspirada em algumas passagens da obra de Freud (1895/1996; 1901/1996) penso nas disciplinas de saúde do trabalho, lembro de nossos programas de saúde da família. Embora Freud não trabalhasse no serviço público, por muitas vezes ele atendia pacientes empregados da grande “firma” B. & R. fazendo visitas profissionais tanto na residência dos funcionários como nos escritórios do prédio onde se localizava a empresa. Freud cita esse testemunho no texto sobre o esquecimento de impressões e conhecimentos.
Essa passagem de um caso diagnóstico duvidoso que Freud reconhece em sua prática, nos leva a refletir sobre elementos importantes para o estabelecimento do nexo causal esquecido no tratamento dos acidentados do trabalho no trânsito. Esquecemos (deixamos pra lá) o porque aceitamos desconhecer o por que pagamos determinados impostos, tal como o licenciamento anual dos veículos automotores. Os impostos que a classe que vive do trabalho não consegue pagar nem entender o porque deve pagar parece atrelada à renúncia ao seguro para Danos Pessoais por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT). A conta do de-ver cível do condutor de pagar seus impostos, não parece justa, ou melhor dizendo, pouco pagável para muitos, pois não se vê retorno ao se pensar numa relação custo-benefício quando se vive sob os piores modos de exploração do tempo e do trabalho humano.
Um acidente reativa os vividos anteriores, infantis e, às vezes, vivências muito precoces que emergem na clínica psicanalítica. Uma notificação de acidente implica também a suspeita de sofrimentos e até mesmo transtornos mentais relacionados ao trabalho. O acidente (e seus potenciais efeitos adoecedores e cumulativos) com motociclistas são fenômenos de repetição associados à condutas de risco, medidas adotadas para conseguir “dar conta” do trabalho. O seu jeito de dirigir pode dar uma forma específica à identidade de condutor, ou dito de outro modo, deforma a própria percepção levando a ver o trânsito e agir sobre ele para atender à ordem do patrão nosso de cada dia: “Consiga realizar as entregas”. Um super-Eu identificado com o discurso do “fodão”, mostra no trânsito como os motoristas revelam seus mecanismos de dominação mais sórdidos e impensados. As consequências aparecem tanto na deformação das identificações em curso, como na sucata metálica da moto amassada, e no corpo (a)batido do trabalhador precarizado em sua dupla valência, corporal e simbólica, não dissociáveis uma da outra (Aeschbacher, 2006).
Outro dia, vi o mesmo motoqueiro próximo ao local da batida, como Vital e sua moto, sem paralamas ou parachoques, seguia sem ouvir o alerta do pai sobre o perigo da motocicleta. Sobre duas rodas, apostava que conseguiria deformar o cronograma de entregas, vencendo os ponteiros do relógio, alcançando o primeiro lugar de algum lugar, garantindo a parca remuneração para cumprir seu dever de prover cuidados para a filha doente. Do ronco da moto só podia se ouvir o grande apetite mortífero de quem quer matar a fome de tentar dar uma guinada na vida, satisfazer a guina, dar conta das exigências da vida.
Referências
AESCHBACHER, Marie-Thèrèse. Les lésions corporelles d’origine somatique ou accidentelle à l’adolescence: une douleur en quête de sens. In: LAURU, Didier; LEMAIRE, Jean-Jacques.Enfances & PSY, Nº 32. Dossier Les Marques du corps. Paris: érès. 2006, pp. 16-22.
FREUD, Sigmund. O esquecimento de impressões e intenções. In: _____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VI. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1996.